Saindo das nossas bolhas de ressonância
Em épocas de divisões ideológicas profundas como estamos vivendo hoje, não é incomum que a maioria das nossas discussões se transformem em Fla-Flu, nos quais defendemos as posições daqueles com quem nos identificamos, sem ao menos considerar os argumentos que são efetivamente levantados. Nas potentes caixas de ressonância das redes sociais, as posições que defendemos servem de distintivo que marcam nosso pertencimento a este ou a aquele grupo. A velha piada sobre o judeu náufrago que constrói duas sinagogas na ilha em que vive sozinho, “em uma, eu rezo diariamente; na outra, eu nem passo na frente!”, passou a refletir partes crescentes das nossas posições.
Na parashá desta semana, Vaishlách, os irmãos Iaacóv e Essáv se reencontram depois de ficarem separados por vinte anos. Esse momento é cercado de tensão, pois Iaacóv tinha fugido da terra de Cnaán depois de trapacear seu irmão pela benção de seu pai e Essáv ter jurado matá-lo. Ao se aproximar da terra em que seus pais viviam, Iaacóv manda mensageiros com mensagens de paz e, quando ele descobre que seu irmão está vindo em sua direção na companhia de 400 homens, ele entra em pânico e desenvolve uma estratégia quase-militar, dividindo seu grupo em dois (para facilitar a fuga) e enviando presentes que adoçassem o coração do seu irmão.
O encontro foi exatamente o oposto do que Iaacóv temia. Essáv abraçou-o e beijou-o e, juntos, os dois irmãos choraram. Essáv propõe que os dois caminhem juntos, uma tentativa de reconstruir a relação fraternal que havia se perdido. Iaacóv recusa: ele deseja paz, mas não proximidade.
Para os comentaristas clássicos, as intenções de Essáv são, necessariamente, as piores possíveis — o grande debate é se Iaacóv agiu de forma correta ao enviar presentes e tentar, assim, apaziguar a ira do malvado Essáv. A associação entre Essáv (também chamado de Edom, ou “vermelho”) e o Império Romano (que tinha no vermelho a sua cor) restringiam a possibilidade de que nossos rabinos, que viviam sob opressão do império, tivessem uma leitura generosa do irmão do nosso patriarca. No entanto, ao ler o texto da Torá, eu não encontro nada que desabone a conduta de Essáv. Se a beleza está no olhar de quem a enxerga, a percepção de que Essáv tinha más intenções também depende menos de suas ações do que de quem as observa. A verdade é que a opinião rabínica a respeito de Essáv tem muito pouco a ver com o que ele faz e muito a ver com o fato de que ele é o antagonista do nosso patriarca – não muito diferente da conduta que verificamos nas redes sociais de hoje.
Essa semana, escutei em um podcast sobre os campos de detenção para uma minoria muçulmana na China, os Uighur [1]. Mais de um milhão de pessoas já foram detidas e, de acordo com algumas fontes, submetidas a processos de lavagem cerebral que buscam convencê-los a abandonar suas crenças religiosas [2], além de outros tipos de violência.
O povo judeu, ao longo de sua história, vivenciou inúmeros episódios em que fomos atacados e massacrados pelo único motivo de termos nossas crenças e práticas religiosas; episódios nos quais o silêncio do mundo, não apenas nos ofendeu profundamente, mas também custou milhões de vidas judias. A tradição judaica ensina que devemos aprender dos episódios de opressão que vivenciamos para que protejamos aqueles que passam por situações semelhantes nos dias de hoje, sem deixar que nossos preconceitos contra qualquer grupo nos impeça de identificar a injustiça onde quer que ela ocorra. Nesse sentido, é nossa obrigação judaica nos solidarizarmos com os Uighur na China e não economizarmos esforços para interromper o brutal assalto do qual eles estão sendo vítimas.
Que nesse Shabat possamos superar a estreiteza das nossas posições habituais e estarmos abertos para desenvolver empatia pela situação dos aflitos, mesmo aqueles que não fazem parte do nosso círculo tradicional de aliados.
Shabat Shalom,
Rabino Rogério Cukierman