A cosmovisão judaica estabelece como um de seus fundamentos a busca por ordem em meio ao caos. Assim se iniciam os primeiros versos da Torá. Diante do tohu va’vohu – o caos primordial – Deus separa luz de escuridão, águas de cima de águas de baixo, terra firme das águas, animais que voam dos que rastejam, dias para o trabalho e dias para o descanso.
Separar é o primeiro gesto criador. Diferenciamos para ordenar. Começamos classificando o mundo, delimitando fronteiras – e logo passamos a estabelecer limites também para a identidade e para a convivência com o outro. É só depois de organizar e distinguir que a Torá nos chama a um passo além: a santificação.
A primeira vez em que a Torá menciona a santidade é justamente quando a criação já alcançou sua ordem:
Então Deus abençoou o sétimo dia e o tornou sagrado, e cessou todo o trabalho criativo que [decidira] fazer.
(Bereshit / Gênesis 2:3)
O rabino Alan Ullman observa que, na Torá, santidade está ligada ao ato de parar. A raiz da palavra kadosh (k-d-sh), contudo, também implica separar, tornar distinto.
Essa parece ser também a essência da Parashat Emór: o texto gira em torno da santidade – a dos sacerdotes, dos sacrifícios, dos espaços e, por fim, do tempo. Por isso, trechos dessa parashá são lidos não apenas nesta semana, mas em outros quatro momentos do ano: no segundo dia de Pêssach, em Shavuot, em Sucot e em Shemini Atséret.
Santificar o tempo é aprender a limitar. Shabat, Pêssach, Shavuot, Sucot, Rosh Hashaná e Yom Kipur – todos descritos em Emór – são formas de restringir comportamentos, de marcar a diferença entre o sagrado e o comum. Mas essa separação não é isolamento.
Martin Buber afirma que a santidade divina não retira Deus do mundo – pelo contrário, ela se expressa no relacionamento. Assim também o povo judeu, ao ser chamado de “santo”, não deve se afastar do mundo, mas sim irradiar nele uma presença transformadora, marcada por uma forma judaica de ver, agir e viver.
Quando nos casamos (kidushin), tornamos aquele relacionamento único entre todos os outros. Ao seguir práticas alimentares que nos fazem separar o que comemos, nos obrigamos a refletir sobre nossos atos mais corriqueiros. Ao deixar as bordas dos nossos campos – o que a Torá exige como parte do sustento dos pobres e estrangeiros – reconhecemos que nem tudo o que está ao nosso alcance nos pertence.
O que então podemos aprender sobre ser santo? A santidade, no judaísmo, não está no afastamento do mundo, mas na forma como separamos para dar significado, limitamos para humanizar, ordenamos para iluminar. Ao marcar fronteiras com consciência, desenhamos caminhos de justiça, sensibilidade e compromisso com a vida – e é isso que transforma o ordinário em sagrado.
Shabat Shalom!
Rabina Kelita Cohen
Academia Judaica da CIP