O desafio de recomeçar a leitura da Torá em um novo ciclo é o de se permitir ler o mesmo texto em um modo diferente ao que fora lido em ocasiões prévias, ou seja, pensar fora da caixa. E nesta saga por encontrar um significado novo, começar a leitura pelo texto em hebraico sem os pontos massoréticos – que canalizam a vocalização e o sentido das palavras – pode ser iluminador. 

Comecemos então pelo que Deus disse a Avraham. A leitura clássica dá nome à parashá: “Lech lechá”. Essa perspectiva de que, ao momento de iniciar uma caminhada, você precisa olhar para dentro de si, é não apenas poética, como também psicológica e filosófica. 

Voltar-se para si mesmo pode ser tanto uma atitude reflexiva quanto egocêntrica. Voltar-se ‘apenas’ para si mesmo. No entanto, as diferentes possibilidades interpretativas não necessariamente devam partir de diferentes sentidos das mesmas palavras, mas também podem partir do sentido de novas palavras que emergem do texto.

Esta foi a missão com a qual me lancei à leitura da parashá desta semana. 

“Va’iomer Adonai el Avraham:

Lech lech me’artsecha (…) al ha’árets asher arecha”.

“E disse Adonai a Avraham:

Vá, vá da tua terra (…) à terra que te mostrarei”

[Gen. 12:1]

A primeira sensação de se permitir ler diferente da leitura consolidada pode ser libertadora, apesar de perigosa. O perigo reside em se perder em algum devaneio sem qualquer fundamento e, pior, de acreditar nele.

Mas uma forma de fugir das armadilhas de se atrever a ler com outras lentes é recorrer a uma pesquisa pelas interpretações de inúmeras gerações de sábios e comentaristas de todas as épocas. 

Seguindo essa trilha de buscar nas fontes alguma validação para uma leitura intuitiva e intencionada a ler diferente, eis que me deparo com a mesma interrogante nas palavras da rabina Wendy Zierler1. Ela questiona: “Dada a falta de vogais na Torá, por que não ler as duas palavras como iguais, como lech, lech (Vá, vá! Saia apressadamente!)?”

Mesmo que numa busca não tão profunda por midrashim dos sábios ou comentaristas clássicos eu não tenha identificado em primeira mão uma resposta à minha pergunta, o fato de encontrar uma rabina contemporânea com a mesma pergunta é, de certa forma, reconfortante. Dá pistas de que é possível que este seja um caminho viável.

Se considerarmos essa leitura como uma repetição do verbo “Lech” (imperativo do verbo ir; andar), encontraremos na escola hermenêutica de Rabi Akiva a interpretação de que, na repetição de palavras na Torá, nenhuma palavra é supérflua. Então, se já foi possível com o primeiro comando “lech” o entendimento de Avraham acerca da ordem divina para sair, o segundo “lech” teria ficado vazio de sentido, o que nos permitiria enchê-lo de novo significado.

Uma possibilidade interpretativa vem da professora Ruhama Weiss, na qual ela propõe em seu poema אַל תַּחְזוֹר אֶל עַצְמְךָ (Não Volte para Si Mesmo) que a leitura não seja לֶךְ־לְךָ (Volte para si mesmo), mas exatamente o seu oposto, לֶךְ־לֶךְ (Vá, apenas vá!) colocando a ênfase na urgência de avançar, sem retroceder. 

Seu poema (um verdadeiro midrash contemporâneo) está repleto de paradoxos. Passamos por um longo período de teshuvá durante o mês de Elul, e de uma forma ainda mais intensa, nos Iamim Noraim, também chamados Asséret Iemei Teshuvá (10 dias de arrependimento, de retorno). E no 4º verso do poema, a Dra. Weiss nos diz em forma imperativa: אָל תַּחְזוֹר בִּתְשׁוּבָה (não faça teshuvá!), significando “não retorne à (antiga) resposta”.  

De fato, há momentos em que precisamos olhar para dentro de nós mesmos, e há outros nos quais precisamos apenas seguir adiante. Olhar para frente e construir o futuro que queremos. Em lech-lechá (ou lech-lech), encontramos ambas as possibilidades.

Que tenhamos a temperança para fazer bom uso das possibilidades diante de nós;

Que possamos olhar o texto uma e outra vez com a inocência infantil e nos permitamos fazer novas perguntas;

Que possamos não retornar sempre à antiga resposta, mas encontrar novos caminhos possíveis; e

Que a incerteza do porvir não tire de nós a coragem de seguir adiante. 

 

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen

Academia Judaica da CIP

 

[Notas de rodapé]:

1 A rabina Dr. Wendy Zierler (ela/ela) é escritora, professora Sigmund Falk de Literatura Judaica Moderna e Estudos Feministas na HUC-JIR em Nova York.

2 Ruhama Weiss é poeta e professora de Talmud no Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion (HUC-JIR) em Jerusalém.