Nos últimos tempos, tem estado em moda a discussão de quem pode falar pelos marginalizados. Será que só judeus podem falar sobre a Shoá? Que só negros podem falar de racismo estrututal, que pessoas fora do universo LGBT+ não podem se manifestar por uma sociedade mais inclusiva?! Pessoalmente, eu acho que quanto mais vozes se juntarem pela construção de uma sociedade mais inclusiva e que valorize sua diversidade, melhor estaremos — mas há algo realmente estranho quando os segmentos oprimidos são excluídos da discussão sobre sua própria opressão. Imaginem uma conferência para discutir antissemitismo da qual judeus não façam parte; imaginem uma mesa redonda para falar de racismo em um canal de TV a cabo da qual não participe nenhum jornalista negro…

A parashá desta semana, Vaishlach, traz dois episódios de violência contra mulheres: no primeiro deles, Shchem, um morador da terra de Cnaán, violenta Diná, filha de Iaacóv [1]; no segundo, Reuben, filho de Iaacov, se deita com Bilá, sua madrasta [2]. Nos dois episódios não escutamos as vozes das mulheres: sabemos do vexame que esses atos trouxeram aos parentes homens da vítimas, como suas honras foram afetadas, que atos eles cometeram como vingança —  mas não sabemos como Diná e Bilá se sentiram, nunca ouvimos como elas fizeram para se recuperar do trauma da violência que havia sido cometida contra elas, como continuaram vivendo depois desses atos. Infelizmente, nas páginas da Torá Bilá e Diná são simplesmente objetos, suas subjetividades não foram reconhecidas.

Nas milhares de páginas de comentários escritos pela tradição rabínica, Diná e Bilá tampouco receberam direito à fala. Vários midrashim [3] colocam a culpa em Diná pela violência que foi cometida contra ela. Como é comum ainda hoje, esses midrashim culpam a vítima por ter se exposto e provocado a atenção de um homem. Outros comentários analisam os interesses estratégicos de Iaacov, dos seus filhos homens, de Reuven, de Shchem e seus compatriotas — os rabinos da nossa tradição, todos homens, se preocuparam com as motivações dos outros homens da história mas mantiveram as mulheres silenciadas.

Nas últimas décadas, o aumento de mulheres comentaristas da Torá e ordenação de mulheres rabinas têm ajudado a apontar para esse silenciamento e romper com ele. A rabina Lia Bass, a primeira brasileira a receber esse título, escreve a respeito da falta de perspectivas femininas: “nenhum dos comentaristas trata diretamente de Bilá. O foco deles é condenar Reuven por ter dormido com a concubina do seu pai; em outras palavras, por ter utilizado a propriedade do seu pai.” [4] A rabina Rachel Barenblatt escreve que “ao longo dessa narrativa, Diná não fala nem uma vez. Sua voz está totalmente ausente do fogo preto de nosso texto. Para ouvir a voz de Diná, olhamos para o fogo branco.” Ela está se referindo aos midrashim que, no entanto, em geral também não deram voz a Diná. A rabina Barenblat cita alguns midrashim de acordo com os quais “Diná se torna a esposa de Jó, o que é considerado uma punição para Iaacov” e elabora: “a forma como o sofrimento subsequente de Diná é visto como uma punição para seu pai, mas não para ela, é um sinal da sua invisibilidade na sua própria história.” [5]

Até hoje, a prática de silenciar mulheres vítimas de violência continua, assim como os questionamentos sobre quais práticas delas contribuíram para o ataque. Casos recentes têm explicitado como nosso sistema judicial está mal equipado para tratar do tema. [6] O silêncio das mulheres da parashá desta semana deve nos servir como alerta de que a violência nunca pode ser contabilizada na conta da vítima, que ainda sofre nova violência quando é objetificada e sua dor tratada como uma extensão do dano à honra masculina. 

A rabina Laura Geller pergunta: “o que acontece com Diná após o episódio? Nós não sabemos. Nunca ouvimos falar dela, como nunca podemos ouvir das mulheres da nossa geração que são vítimas de violência e cujas vozes não são ouvidas.” [7] Temos falhado nesse sentido, a ponto de, como diz Andrea Kulikovsky, alguma forma de violência sexual atingir todas as mulheres hoje em dia. [8]

Por cada uma de nós, por cada um de nós, precisamos fazer mais para acolher e dar voz às mulheres, para educar os homens, para romper com esse modelo tóxico de sexualidade e poder. Precisamos fazer muito mais.

 

Shabat Shalom

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Gen. 34:1-31

[2] Gen. 25:22a

[3] Veja, por exemplo, Bereshit Rabá 80:1-5, Tanchuma Vaishlach 5.

[4] “The Women’s Torah Commentary”, Rabina Elyse Goldstein (ed.), p. 86.

[5] https://velveteenrabbi.blogs.com/blog/2013/11/on-dinah.html

[6] https://www1.folha.uol.com.br/podcasts/2020/11/o-que-ataque-a-mariana-ferrer-diz-sobre-processos-por-estupro-no-brasil-ouca-podcast.shtml

[7] https://www.myjewishlearning.com/article/comforting-dina/

[8] https://www.facebook.com/MulheresnaTora/posts/257348998275391