“Dos mitos de criação do mundo de culturas pré-científicas às teorias cosmológicas modernas, a questão de por que existe algo ao invés de nada, ou, em outras palavras, ‘por que o mundo?’, inspirou e inspira tanto o religioso como o ateu.” 

Esta afirmação aparece no livro “A dança do Universo”, do físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, vencedor do prêmio Templeton de 2019. Considerado o “Oscar da espiritualidade”, o reconhecimento é dado a personalidades que contribuíram para reafirmar a dimensão espiritual da vida. 

“Embora ciência e religião abordem a questão da origem do universo com enfoques e linguagens que têm pouco em comum”, afirma o cientista, “certas ideias forçosamente reaparecem, mesmo que vestidas em roupas diferentes”. 

Rosh HaShaná é o aniversário do universo. Segundo a liturgia que repetimos durante o ano novo judaico, neste dia, há 5780 anos, o mundo teria sido criado. Mais especificamente, estamos celebrando o aniversário de Adão e Eva, criados no sexto dia da narrativa de Gênesis. Hoje seria, portanto, o  aniversário da Humanidade. 

 

Muitos podem ter alguma dificuldade de se conectar com essa mensagem no mundo contemporâneo. Afinal de contas, a ciência aponta para a existência do homo sapiens há 200 milênios e um universo que possui quase 14 bilhões de anos. 

Existem ao menos três formas de se relacionar com essas aparentes contradições. A primeira, seria descartar a narrativa religiosa associando-na a uma etapa primitiva de nossa existência em que o conhecimento científico não estava disponível. 

A segunda possibilidade seria dizer que a religião revela uma sabedoria inquestionável que aponta para um enorme equívoco da abordagem científica. A última alternativa, mais complexa que as anteriores, seria sofisticar a nossa leitura religiosa por um lado, enquanto agregamos dimensão ética ao método científico por outro. Em outras palavras, a terceira alternativa é estabelecer um diálogo profundo entre ciência e religião. 

Com o advento da Hascalá, o Iluminismo judaico, ganhamos a possibilidade  de não apenas estabelecer um inédito diálogo entre o judaísmo e a ciência, como ver nesta conversa uma oportunidade única de enriquecimento para cientistas e religiosos. 

 

Estive em Londres para um sabático de três meses e pude me aproximar do pensamento do rabino Jonathan Sacks, também ganhador do prêmio Templeton em 2016, com quem já tinha participado de encontros de diálogo inter-religioso. Na opinião de Lord Sacks, a ciência separa coisas para explicar como funcionam e a religião reúne coisas para entender o que significam. “Quando Darwin desenvolve sua teoria de seleção natural”, afirma Sacks, “ela parece ser incompatível com sua crença cristã […]. Mais tarde, percebemos que Darwin criou, sem ter esta intenção, uma das mais belas ideias religiosas, que é ‘o Criador fez a criatura, criativa”. “Assim”, diz o rabino inglês, “poderíamos resumir o darwinismo”. 

O número 5780 é um símbolo que nos convida a entrar em contato com princípios como “todos temos uma origem comum” ou “fomos criados à imagem e semelhança do Criador” ou ainda “devemos cuidar dos animais e do meio ambiente porque temos um destino comum”. Da mesma forma, a leitura dos demais mitos judaicos como metáforas recheadas de valores, nos traz a oportunidade de nos libertar de um fanatismo pouco instruído que vê na literalidade da vida, da religião e da história um valor absoluto. 

O obscurantismo nos dias atuais contamina a política, que desconfia de evidências científicas amplamente comprovadas como o efeito estufa e as consequências nefastas do aquecimento global, seja por malícia ou por ignorância. Em pleno século 21, existem pessoas que voltaram a acreditar que a terra é plana e existe inclusive um movimento chamado “terraplanismo”. 

 

Mais do que nunca, a aliança entre religião e ciência é necessária para reafirmar nosso compromisso com um ativismo crítico, que incorpora o conhecimento científico e faz de sua defesa uma tarefa sacramente esclarecida. 

Meu professor de midrásh certa vez disse que uma mesa na literatura mítica judaica pode ser qualquer outra coisa menos uma mesa. A literatura judaica tradicional nos convida à constante interpretação e à interpretação da interpretação. O próprio judaísmo clássico insiste na ideia de que a Torá escrita foi dada junto com a Torá oral, reforçando a noção de que sem interpretação e tradição oral, o texto não tem qualquer relevância. 

Existe uma diferença central na formação de rabinos ultra-ortodoxos e aqueles que se preparam para o rabinato nas demais correntes do judaísmo: a formação acadêmica. 

Nós, rabinos liberais, somos obrigados a entrar nos estudos religiosos com algum título acadêmico e o rabinato é permeado por um estudo de pós- graduação científica. Isto faz com que a formação do rabino liberal dialogue com a formação acadêmica dos membros de sua comunidade e demais cidadãos da sociedade. 

Percebemos esta diferença com respeito à legislação religiosa que continua evoluindo por meio das responsa. Rabinos de distintas linhas religiosas respondem às perguntas de suas comunidades sobre os mais diversos aspectos da vida. A diferença relevante entre as ferramentas utilizadas para chegar a distintas conclusões é justamente a incorporação ou não no conhecimento científico. No processo de determinação da halachá presente nas comunidades ortodoxas, haverá resistência na incorporação de análises científicas por não se tratar de conhecimento judaico clássico. 

Assim, legisladores ortodoxos, como Moshe Feinstein ou Ovádia Iossêf, vão navegar apenas no universo judaico clássico para chegar a suas conclusões. No mundo liberal, a ciência será parte integral do debate. Desta forma, se existem trabalhos acadêmicos sobre os assuntos religiosos em discussão, a voz da ciência entrará no debate como mais um fator a ser levado em conta ao lado das fontes judaicas e, desta maneira, a ciência passa a ser uma fonte judaica por excelência. 

Por conta disto, as diferentes versões do judaísmo chegarão a diferentes conclusões sobre os mesmo assuntos. Um exemplo interessante é justamente o caso do tabagismo. Em algum momento, acreditou-se que fumar fazia bem à saúde. Havia teorias de que a nicotina ajudava na digestão e na circulação sanguínea. 

Depois de pesquisas acadêmicas, cientistas chegaram à conclusão de que fumar aumenta significativamente a chance de ocorrência de doenças crônicas. A partir desde momento, como causar dano proposital à vida humana é proibido pelo judaísmo, o rabino David Golinkin, do movimento Massorti, escreveu uma teshuvá proibindo o judeu observante de fumar. Na ortodoxia não existe esta proibição e isto se deve, principalmente, à dificuldade de incorporar o conhecimento científico no seu processo legislativo. 

 

O transplante de órgãos é rotina nos hospitais do mundo inteiro. A doação de um órgão pode salvar vidas e não pode existir valor religioso maior do que este. O obscurantismo de teorias que envolvem a necessidade de se enterrar um corpo intocado para que, apenas assim, possa ser ressuscitado na vinda do Messias, já impediu potenciais doadores de dar o destino mais sagrado possível para seus próprios órgãos. A desinformação na era da informação faz com que muitos ainda acreditem que judeus não podem doar órgãos quando, na realidade, não poderia existir atitude mais judaica do que esta. 

Ao mesmo tempo, acredito que a religião pode contribuir com o debate ético cada vez mais necessário em função dos avanços científicos. A academia, sem a ética, pode ser fanática a ponto de transformar a ciência em uma religião fundamentalista. Isto, de fato, já ocorreu em momentos de positivismo científico e serviu de fundamento para episódios catastróficos de ditaduras e perseguições. 

Distanciar-se da noção de verdade absoluta e incorporar às suas práticas os mecanismos heterodoxos de intuição e acaso, embora não sejam ferramentas acadêmicas clássicas, foram as peças responsáveis por inúmeros avanços científicos. As contribuições da literatura ficcional e da própria fé religiosa à ética científica distanciam-na do fanatismo acadêmico. 

Marcelo Gleiser sintetiza: “A religião teve (e tem!) um papel crucial no processo criativo de vários cientistas”. 

A conversa entre religião e ciência permite que o obscurantismo de outrora seja substituído por uma fé esclarecida. Se, no passado, a religião serviu para explicar o funcionamento do universo, hoje a ciência desempenha este papel de maneira muito mais sistemática e bem sucedida. Cabe a nós a coragem de compreender que o papel da religião mudou. 

Esta mudança traz a oportunidade de uma sofisticação da experiência religiosa que não mais precisa dar respostas superficiais e definitivas aos anseios humanos, mas inspirar o homem e a mulher na busca de uma vida mais significativa e ética. 

Se quisermos nos engajar no fortalecimento da herança judaica, se a continuidade do judaísmo for relevante para nós, então teremos de superar o obscurantismo fanático e optar por uma religiosidade aliada à investigação científica de ponta. Conjugando o conhecimento disponível em cada geração com a constante busca de sentido ético que a religião estimula, estaremos nos matriculando no livro de uma vida, a um só tempo, esclarecida e sagrada. 

Shaná Tová!

Rabino Michel Schlesinger