A força de uma narrativa
 
A Torá conta três histórias sobre a organização do sistema judicial dos israelitas. Por que esta história precisa ser contada três vezes ao longo da Torá se o resultado é sempre o mesmo?
Porque tão importante quanto o que contamos é como contamos. A foça da narrativa não está somente nos fatos, mas na sua significação. A maneira como relatamos os acontecimentos inclui nossa perspectiva deles e valores vinculados a esta mesma visão.
Quando prestamos a atenção nas três versões sobre a reorganização do sistema judiciário dos Filhos de Israel no deserto, identificamos narrativas diferentes. Na primeira (em Shemót), a iniciativa vem de Itró, um estrangeiro. Na segunda (Bamidbar 11:14) é uma orientação de Deus e no último caso (primeiro capítulo de Devarim), um iniciativa de Moisés.
Começando de trás para frente, poderíamos sugerir que, em Devarim, era importante que a iniciativa da reorganização partisse do próprio líder para representar que o povo e seus líderes assumiriam o destino do povo a partir da entrada na Terra Prometida e que a vida de milagres paternalistas cotidianos estava por terminar.
Quando Deus sugeriu e mudança, em Bamidbar, o povo se encontrava em meio à uma travessia assustadora, entre a recém abandonada escravidão e o futuro desconhecido e precisavam, mais do que nunca, de uma voz superior que indicasse com clareza o caminho a ser seguido.
E no nosso texto? Por que era importante a narrativa de uma mudança judicial por iniciativa do sogro de Moisés, o sacerdote de Midián, o estrangeiro?
Para o rabino Joshua Kolp da Ieshivá Conservadora de Jerusalém, a chave para responder a nossa pergunta está no fato de que a entrega dos Dez Mandamentos acontece também na nossa parashá. Segundo o rabino que vive em Israel, antes de recebermos nossas leis particulares era importante reforçar nosso pertencimento à humanidade de maneira geral.
Itró e seu conselho, nesta perspectiva, representa nossa capacidade de aprender com o estrangeiro. O conselho de reorganização do sistema judiciário na mesma parashá que nossas leis seriam entregues, simboliza o desafio de continuar aprendendo sempre com aquele que é diferente de nós.
Nós judeus temos muito orgulho em dizer que criamos o monoteísmo, fomos os primeiros a receber a bíblia que seria incorporada pelas maiores religiões do mundo e nossos dez mandamentos se tornaram uma espécie de manual universal das civilizações.
A história de Itró e sua narrativa, talvez, reforçam a noção de que devemos sempre nos manter abertos para aprender com a sabedoria e a experiências dos outros.
É a possibilidade de aprender Torá de outras nações que nos habilita a receber e interpretar nossa Torá.
Isto não significa assimilação, pelo contrário, representa a nossa possibilidade de integrar novas perspectivas que partem do estrangeiro e se incorporam a nossa identidade a partir de nossa perspectiva particular, esta sim, sempre judaica.
Que sejamos capazes de valorizar a nossa história sem deixar de especular sobre as diversas narrativas possíveis para o mesmo acontecimentos. Que sejamos muito orgulhosos de nossa identidade particular sem, nunca, deixar de aprender com a sabedoria que vem de fora.
Shabat Shalom
 
Rabino Michel Schlesinger