A montanha-russa de Av e a responsabilidade pelas nossas escolhas
Até que a labirintite me afastou dos parques de diversões, eu adorava andar em montanhas-russas, especialmente naquelas radicais com muitos loops. Tinha algo que me encantava naquela sucessão de subidas e descidas rápidas, em olhar o mundo de ponta cabeça para, logo em seguida, vê-lo em pé de novo. Estes dias, estamos vivendo a montanha-russa do calendário judaico: na semana que está terminando, tivemos Tishá BeAv (9/Av), considerada a data mais triste do calendário, ponto focal de tragédias da história judaica e que a leitura rabínica associou à prática de sinat chinam, o ódio injustificado; seis dias depois teremos Tu BeAv (15/Av), em que celebramos ahavat chinam, o amor sem motivo, e que a Mishná considera um dos dois dias mais felizes do ano [1]. Do dia mais triste a um dos mais felizes em seis dias, um desafio que deixa nossos sentimentos confusos, sem saber muito bem se estamos de pé ou de ponta-cabeça….
A parashá desta semana, Vaetchanán, também tem a sua dose de altos e baixos, incluindo passagens que lidam com os temas do ódio e do amor. É nela que encontramos uma das frases mais famosas de toda a Torá: “Sh’má Israel, Adonai Eloheinu, Adonai Echad”, “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus, Adonai é Um”, que pronunciamos na liturgia diária duas vezes ao dia. O parágrafo que segue esse verso (e que também faz parte da liturgia diária) começa dizendo que devemos amar a Deus “com todo o nosso coração, com toda a alma e com toda a nossa força.” [2] Ao longo dos séculos, nossos comentaristas têm questionado, de um lado, se é possível impor a obrigação de amar e, de outro lado, o que quer dizer amar com o coração, com a alma e com a força. Uma das respostas que eu mais gosto é aquela que diz que demonstramos nosso amor por Deus por meio das nossas ações e da forma como tratamos a criação de Deus (o planeta, os animais e, principalmente, as outras pessoas, que foram criadas à imagem e semelhança de Deus). O verso, portanto, não está legislando nossos sentimentos mas orientando as nossas ações e nos dizendo que devemos agir dessa forma em tudo o que fazemos, envolvendo nossas emoções, nossa razão e nossos recursos nesse processo. Quando conduzimos nossas vidas através do respeito, da generosidade e da empatia, tornamos concreta a ideia de amor sem motivo que celebramos em Tu BeAv.
A montanha-russa da parashá faz uma curva e no seu finalzinho temos instruções sobre como os Israelitas deveriam tratar os povos que habitavam a terra de Israel quando lá chegassem [3]. As instruções falam da destruição desses povos, com imposições não negociadas e eliminando completamente suas práticas religiosas. Em linhas gerais, se parece com o que grupos religiosos fundamentalistas fazem com relação às outras religiões, as mesmas condutas que lamentamos em Tishá BeAv quando foram praticadas contra o povo judeu. Considerando as formas como condenamos o ódio gratuito, é fundamental que reconheçamos o incômodo ao lermos essas passagens e que rejeitemos as práticas que elas implicam. O respeito à vida de todo ser humano, o pluralismo e a tolerância religiosa se tornaram, ao longo dos séculos, pilares fundamentais da tradição judaica e têm que determinar nossa leitura das passagens problemáticas da nossa tradição.
O rabino Avraham Samuel Benjamin Sofer, que viveu na Hungria no século 19, perguntou por que o nome de Deus aparece duas vezes no Sh’má. Seria mais direto, ele argumentava, se o texto dissesse: “Escuta, Israel, Adonai é nosso Deus e é um.” Para ele, o objetivo de Moshé para esta citação dupla seria deixar claro que tudo em nossas vidas vem de Deus, nossos sucessos e nossos fracassos, os tempos em que temos muita sorte e aqueles nos quais tudo dá errado. Mesmo que tudo venha de Deus, a Torá nos instrui claramente a reconhecer o que é bom e o que é ruim, o que gera a vida e o que nos leva à morte, e a escolhermos o que é bom e a vida [4]. Da mesma forma, todas estas passagens fazem parte da Torá e da nossa tradição, mas precisamos reconhecer quais passagem nos encaminham para uma vida de respeito, empatia, pluralismo e parceria e escolhê-las, ao mesmo tempo em que indicamos claramente aquelas cujo caminho rejeitamos. O trabalho não é fácil, mas certamente leva a uma vida de muito mais significado.
Shabat Shalom!
Rabino Rogério Cukierman
[1] Mishná Taanit 4:8
[2] D’varim 6:4-5
[3] D’varim 7:1-5
[4] D’varim 30:15,19