Se você buscar na internet pela pessoa que primeiro formulou o conceito de que “um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, descobrirá mais de uma versão sobre sua autoria: há quem diga quem tenha sido Sir Edmund Burke (1727-1797), e quem afirme que a frase é muito mais recente e atribua sua autoria a George Santayana (1863-1952). Quem quer que tenha sido o seu autor, existe alguma tensão entre a frase e a percepção judaica da história.

Há quem diga que não há ninguém tão obcecado com a sua própria história quanto o povo judeu. Nos definimos através de nossos antepassados, recontamos com frequência nossas experiências históricas com uma devoção religiosa. Até mesmo quando Deus se apresenta ao povo no alto do Monte Sinai, o faz apresentando suas credenciais históricas: “Eu sou Adonai, teu Deus, que te tirou da terra de Mitsrayim, da Casa da Escravidão.” [1] 

No entanto, mesmo com a ênfase no conhecimento da nossa história, a tradição judaica busca não apenas lembrar, mas reviver seus episódios centrais. Nas festividades judaicas, por exemplo, tentamos ao máximo possível reviver eventos históricos: tanto situações alegres como a Saída de Mistrayim (que revivemos no Sêder de Pêssach) e o Recebimento da Torá (que revivemos com o Ticun de Shavuót e na leitura das Dez Afirmações na manhã seguinte), quanto episódios que gostaríamos de esquecer, como as tragédias associadas a Tishá BeAv, pela qual observamos práticas de luto mesmo milênios depois dos eventos terem acontecido. Na liturgia diária, recitamos o Mi Chamôcha e nos transplantamos para a vivência e os sentimentos da geração que cruzou o Mar dos Juncos em direção à liberdade.

Em algumas situações, no entanto, parece quase uma maldição que grupos e povos não consigam escapar de situações de opressão e continuem, não por escolha própria, revivendo seus momentos mais trágicos. De alguma forma, a data de Tishá BeAv, à qual fiz referência acima, é um exemplo judaico deste fenômeno, um ponto focal de tragédias históricas que foram sendo acumuladas ao longo dos séculos, incluindo o atentado à AMIA  em Buenos Aires, ocorrido em 18 de julho de 1994 (10 de Av de 5754); episódios de antissemitismo do qual gostaríamos de escapar, esforço no qual ainda não tivemos sucesso.

Outros povos vivem situações semelhantes. Olhe, por exemplo, para a comunidade afro-descendente no Brasil. Sequestrados de seus lares em outro continente, foram trazidos para cá à força, escravizados, brutalizados, desumanizados. Após mais de três séculos de regime escravocrata, puseram fim à escravidão legal sem criar as condições para a integração social das pessoas que tinham sido escravizadas. Como afirmou a filósofa Djamila Ribeiro: “a gente tem mais tempo no Brasil de escravidão do que sem escravidão, e isso impacta na construção das desigualdades no país, impacta na população negra e indígena, sobretudo. Não tem como a gente esquecer, mais de 300 anos de opressão num país que tem pouco mais de 500, como que isso, tanto no período da escravidão, mas depois no pós-abolição, que não foram deixadas políticas de reparação para incluir a população negra.” [2]

Na parashá desta semana, temos duas vezes o relato de como Deus orientou Moshé a instruir o povo a pedir aos egípcios objetos de prata e de ouro e predispôs os egípcios a atender o pedido dos israelitas, lhes dando tudo o que eles queriam [3]. A saída dos hebreus carregando objetos valiosos recebidos dos egípcios, que já tinha sido anunciada em outras passagens da Torá [4], tem atraído a atenção de muitos comentaristas. O verbo usado na Torá para “pedir” ao descrever a ação dos hebreus (lish’ol) pode ser entendido também como “tomar emprestado”, e não foram raros os comentaristas que indicaram uma ação pouco ética dos hebreus (e de Deus, que os instruiu!), ao pedirem emprestado objetos valiosos sem a intenção de devolvê-los. Philo, um filósofo judeu que viveu em Alexandria, no séc. I E.C., por outro lado, considerava que as riquezas recebidas pelos hebreus tinham sido indenizações pelos anos de trabalho escravo; na mesma linha de raciocínio, Nachmanides (1194-1270) acreditava que os presentes oferecidos pelos egípcios eram um reconhecimento de sua culpa e um pagamento de reparação pelos danos causados aos hebreus. Ainda que a violência contra os hebreus tenha sido engendrada pelo Faraó, e que nem todos os egípcios tenham tomado parte nela, Deus permitiu que todos percebessem sua responsabilidade e que ajudassem para a sua resolução.

É difícil não estabelecer paralelos entre a situação da saída dos hebreus de Mitsrayim e aquela na qual se encontraram as pessoas libertadas de sua condição de escravidão no Brasil, sem que a sociedade que as havia oprimido reconhecesse sua culpa ou providenciasse reparações. Quase um século e meio depois, seus descendentes continuam vivendo permanentemente — não por escolha própria — as consequências da violência que sofreram por mais de três séculos, um ciclo de opressão que se renova e retroalimenta. 

Que, assim como fez com os egípcios, a fagulha Divina que reside em cada um de nós nos predisponha a encararmos a situação de nossos semelhantes com humildade, empatia e reconhecendo os privilégios que herdamos em uma sociedade profundamente injusta e desigual e para que ajamos na direção de diminuir estas injustiças e desigualdades.

 

Shabat Shalom!

Rogério Cukierman

 

[1] Ex. 20:2

[2] bit.ly/3yQoB05

[3] Ex. 11:2-3, 12:35-36.

[4] Gen. 15:13-14, Ex. 3:21-22.