Nem uma a menos
Em uma sociedade na qual a busca de equidade de direitos entre homens e mulheres vem crescendo cada vez mais, essa parashá nos traz um elemento extremamente complexo. Numa primeira leitura, a cerimônia de Sotá, pode ser assustadoramente agressiva para as mulheres. Dar razão ao marido ciumento que tem poder sobre sua esposa e a faz passar por um momento de total humilhação para que ele fique mais tranquilo, parece ser um absurdo.
A mulher é, no mundo da época bíblica, propriedade masculina. O homem estaria em seu completo direito de fazer o que quisesse em relação à sua esposa em qualquer circunstância. Com sorte, um marido raivoso poderia abandoná-la, outras menos sortudas poderiam ver o fim de seus dias sem ter nenhuma chance de se defender. A própria Torá tem como punição às mulheres adúlteras a pena de morte, assim como outras culturas da época.
Seria ótimo pensar que essa visão é arcaica e não tem mais nenhuma relação com nossa realidade. Infelizmente, sabemos que muitos relacionamentos ainda estão sob essa premissa e sob essa ótica, muitos defendem que a complicada e humilhante cerimônia de Sotá é uma tentativa de defender a mulher desse marido ciumento que tudo pode sobre ela.
Nessa cerimônia, a mulher é levada ao sacerdote, que preparará uma água mágica com terra do chão do Tabernáculo, tinta dissolvida de um pergaminho (no qual estaria escrito o nome de Deus). Ele desmanchará seus cabelos e fará que ela jure não ter se deitado com outro homem. A mulher poderia confessar neste momento ou tomar da água amarga e amaldiçoada. Se fosse culpada, seu corpo seria deformado, se fosse inocente receberá como recompensa, bons partos.
Uma cerimônia pública e humilhante. Na qual as opções da mulher eram: sair deformada ou ter bons partos no futuro. Bons partos com esse mesmo marido que a fez passar por tudo isso. Uma leitura atual dessa história faz com que isso seja quase impossível. Quem voltaria a ter um relacionamento com alguém que fez com que passasse por uma vergonha pública e humilhação pela pura e simples falta de confiança? Como fazer para reconstruir esse relacionamento? A confiança é algo que demora bastante para ser construída e apenas alguns segundos para se desfazer. E se reconstruir, demora muito mais do que na primeira vez.
Uma leitura entendendo o momento histórico-social em que isso foi escrito, nos leva a uma leitura completamente oposta. Dado o poder que o marido tinha sobre sua esposa, e os perigos que ela enfrentava, caso ele pudesse fazer o que quisesse, voltar ao marido com a consciência tranquila é o melhor que poderia acontecer. Uma mulher abandonada dificilmente teria como se casar novamente (quando não fosse pior ) e ficaria a mercê da vida. A cerimônia de Sotá é lida por muitos, nesse contexto, como uma possibilidade de vida da mulher. O marido não poderia fazer nada apenas com a suspeita, precisaria de provas e de testemunhas.
A tradição judaica diz que essa cerimônia não deve ter sido realmente levada a cabo nunca. Talvez isso nos dê um pouco mais de conforto em relação a essa passagem. Ou talvez nosso único conforto venha de saber que atualmente estamos começando a caminhar para outro papel da mulher em um relacionamento. Depois de milhares de anos em que as mulheres foram meros objetos, hoje podemos dizer que a mudança já começou. Apenas começou. Estamos muito longe de afirmar que mulheres já não morrem nas mãos de maridos ciumentos. Como será que poderemos traduzir essa cerimônia para algo mais atual e menos humilhante. Que possamos ajudar essa caminhada em direção a “Nem Uma A Menos”.
Shabat Shalom
Rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik