“Chamou a Moshé e Adonai lhe falou da Tenda do Encontro, dizendo…”. Com este verso começa a parashá desta semana e o livro de Vaicrá, Levítico, o terceiro dos cinco livros da Torá. Quem chamou a Moshé não fica claro e tem sido o objeto de grande debate e especulação entre os comentaristas ao longo dos séculos.

Como componente adicional do mistério, a última letra da primeira palavra deste verso é um alef, que, neste caso, é escrito em um tamanho menor que as demais letras da página. Quem poderia ter chamado a Moshé para que Deus o instruísse nas regras dos sacrifícios, tema de grande parte deste terceiro livro?

Há comentaristas para quem o alef, em tamanho pequeno, é sinal de que é o “eu” (“aní”, em hebraico) de Moshé quem o chama, e interpretam que cada um deve escutar a sua voz mais profunda, a sua consciência mais verdadeira, para definir quais são os interesses que nos levariam a um envolvimento verdadeiro e que sacrifícios estamos dispostos a fazer, do que estamos dispostos a abrir mão.

Uma outra interpretação para o pequeno alef vai na direção contrária e o associa à Shechiná, ao aspecto do Divino que está mais próximo do mundo em que vivemos e presente em todas as coisas e em todas as pessoas. Nesta leitura, escutar o chamado do pequeno alef é prestar atenção ao mundo que nos rodeia para decidir os sacrifícios que precisamos fazer. Se, na primeira interpretação, perguntávamos ao nosso eu mais profundo em que deveríamos nos envolver, desta vez, paramos para escutar o que o mundo grita que suas necessidades mais prementes são. Olhamos ao redor, enxergamos o Divino na face das pessoas que nos são próximas e também nas de quem nos é mais distante. Quais são as causas e projetos cuja urgência clama pelo nosso envolvimento, mesmo que não seja o assunto que mais nos interessa?

Em qualquer dessas duas abordagens, a questão do sacrifício pessoal tem valor central. Vivemos em um tempo de fartura material como, provavelmente, a humanidade jamais tenha visto. Temos, em geral, muito mais “coisas” do que conseguiríamos aproveitar nas nossas vidas, geramos uma quantidade imensa de lixo a cada dia, e, mesmo assim, temos enorme dificuldade em desapegar, em abrir mão de coisas que nos são caras. Quando fazemos uma doação, é dinheiro que não nos faltará ou um sapato que já não usamos mais; quando damos algo nosso de presente, é, via de regra, algo do qual enjoamos. 

Várias situações anedóticas, no entanto, relatam que pessoas que têm muito menos apresentam maior propensão a dividir o pouco que têm, mesmo que depois lhes falte, mesmo que o feijão fique aguado como consequência do convidado adicional à mesa. O Livro de Vaicrá aponta para esse comportamento como desejável: Deus nos instrui a abrir mão das melhores frutas, dos melhores animais, de doarmos aquilo do qual, na verdade, sentiremos falta. E, então, o pequeno alef ao final da primeira palavra do livro nos convida a perguntarmos de que nossa verdade mais íntima nos instrui a abrirmos mão? Em quais causas acreditamos mais profundamente e com a qual queremos contribuir, que realidades gostaríamos de transformar, em que projetos sentimos que precisamos estar envolvidos, mesmo que tenhamos que abrir mão de outros interesses?

Um midrash famoso fala que Avraham chegou à percepção da existência de um Deus único ao perceber que, assim como um farol não se consumia pelo fogo porque havia um faroleiro que cuidava dele, que se o mundo não era consumido pelo caos, o Divino precisava existir para garantir a continuidade do mundo. Vários teólogos dizem que vivemos em uma época de Hester Panim, na qual Deus esconde Sua face. É nossa vez de escutarmos nossa voz interna e de enxergarmos a realidade externa, e de fazermos os sacrifícios que conseguirmos para garantir que o caos não engula completamente o nosso mundo. 

Qual é a causa que verdadeiramente te interessa? Qual a necessidade sobre a qual você enxerga o mundo gritando e pedindo ajuda? O que você está disposto a sacrificar para garantir que vivamos todos em uma realidade mais justa, mais equilibrada, mais inclusiva e mais acolhedora?

 

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman