Na maioria das vezes em que nos deparamos com a história de nossos antepassados no Egito, focamos na escravidão, na liberdade, no medo do povo de Israel diante dessa liberdade, no milagre divino ou em seu questionamento, no faraó, na liderança de Moisés ou em sua fragilidade humana.
Todavia, há um aspecto dessa história que também merece atenção: o povo egípcio. Qual foi sua atitude diante desses acontecimentos? Concordavam com a escravidão ou a suportavam em silêncio? E esse silêncio era de cumplicidade ou de impotência?
Essa pergunta é extremamente relevante à luz das constantes revisões históricas sobre as ditaduras militares na América Latina, o nazismo na Alemanha e na Europa em geral, e, especialmente, diante das tensões no Oriente Médio. Hoje, em particular, pensamos repetidamente nos palestinos e, mais especificamente, nos habitantes de Gaza: qual é a relação deles com o terror do Hamas? Essas reflexões nos levam a questionar se apenas os líderes foram culpados ou se soldados de menor poder podiam se esconder sob o argumento do cumprimento do dever e das ordens. Qual o papel da educação, da cultura, da comunicação, da política, da justiça e dos próprios povos nesses processos?
Algumas linhas da parashá desta semana despertam essa questão. Elas descrevem o momento em que os hebreus, prestes a sair do Egito, “pedem” aos egípcios objetos de ouro, prata e vestimentas. Os egípcios concordam, e essa pequena cena se encerra com a controversa frase: “aproveitaram-se do Egito”.
Os comentaristas divergem sobre o significado desse episódio. Alguns argumentam que Israel realmente se aproveitou dos egípcios, pois pediu os objetos como se fossem emprestados, mas acabou levando-os consigo. No entanto, justificam que essa atitude seria legítima, funcionando como uma compensação pelos anos de sofrimento e exploração, um ato de justiça que, inclusive, contribuiria para a moral egípcia.
Outros sugerem que não houve engano algum. Os hebreus pediram os bens com a intenção explícita de levá-los, e os egípcios escolheram entregá-los, reconhecendo a necessidade de compensação, reparação e justiça.
Há ainda aqueles que afirmam que os egípcios cederam por puro desespero – não suportavam mais os hebreus nem as pragas e queriam que partissem o mais rápido possível, a qualquer preço.
Por fim, algumas interpretações sugerem que os egípcios entregaram os bens de forma genuína, não para aliviar a consciência ou fazer justiça, mas simplesmente porque apreciavam os hebreus e desejavam seu bem na travessia.
Não temos como saber qual interpretação é a correta. Mas nossa escolha sobre como enxergar esse episódio nos ajuda a exercitar o olhar sobre aqueles que estão diante de nós.
Shabat Shalom,
Rab. Dr. Ruben Sternschein
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