Buscando a mim mesmo
Certo dia Moishele chegou atrasado à escola. O professor ao final da aula, carinhosamente perguntou qual tinha sido o motivo do atraso.
Moishele respondeu que não conseguiu encontrar as roupas e os sapatos que havia tirado na noite anterior. A busca foi o que lhe atrasou.
O professor decidiu ajudar o pequeno Moishele dizendo:
– Da próxima vez que for tirar seus sapatos e roupas, anote num papel onde deixou cada coisa para poder usar no dia seguinte. Lembre-se apenas de deixar esse papel na cabeceira de sua cama. Assim quando você acordar poderá encontrar facilmente cada item.
Moishele ficou muito feliz por receber esse conselho, pois aprendeu uma ideia de como ser mais eficiente. Porém no dia seguinte chegou atrasado à escola novamente.
O professor lhe perguntou o que havia acontecido naquele dia e se ele não tinha usado sua dica. Porém, Moishele lhe respondeu:
– Professor, sua dica foi ótima, eu realmente encontrei meus sapatos, minha blusa, minha calça e meu casaco. Porém demorei bastante em encontrar o Moishele para poder vesti-lo.
Quem sou eu? Quem eu gostaria de ser? Quem fui e quem serei?
Essas são algumas das perguntas que rodam nossas mentes nos últimos dias do ano, talvez desde o início de Elul há um ano, terminando de verdade, apenas quando chegarmos a Elul deste ano que acabou de iniciar.
Essas perguntas não são novas e nem exclusividade nossa ou do nosso tempo, muito menos exclusividade da filosofia, ainda que houve séculos que tentamos respondê-las. Desde que o ser humano é um ser pensante perguntas como essas começaram a passar por suas cabeças.
No entanto, muitas vezes essas perguntas buscam respostas que não são nós mesmos. Buscam respostas externas a nós ou do nosso exterior. Assim como Moishele que, com um pouco de ajuda, facilmente encontrou tudo o que lhe era externo.
Nós temos muitas oportunidades para ver e rever nosso exterior, mas quando é que de verdade olhamos para o nosso interior? Estamos no meio do dia no qual Deus abre os portões dos céus e com uma lupa olha para dentro de cada um de nós. Não para nosso exterior. Será que Deus pode realmente ver o que nós nos recusamos a olhar?
Nossos sábios dizem que justamente por ter nos criado, Deus pode olhar dentro do nosso coração por mais que nós tentemos evitar alguma coisa escondida bem no fundo, consciente ou inconscientemente.
Como cada um de nós é único, e Deus sabe disso, também a maneira com que nos olha é única. Cada um de nós pode ver alguma coisa ou deixar de ver outras em diferentes momentos de nossas vidas.
Nossas mentes e almas reagem de maneira diferente às diversas situações que vemos e vivemos ao longo de nossas vidas. Muitas vezes não sabemos exatamente o porquê de reagimos de tal maneira ou pensarmos em alguma coisa, mas a realidade é que todas essas possibilidades de reações estão dentro de nós.
Rosh Hashaná é o dia em que celebramos a criação do primeiro ser humano. Quando a vida era, possivelmente, mais simples. Relembrar essa história poderia nos inspirar a ver a simplicidade da vida, a qual todos nós tornamos cada vez mais complexa. A pesar da sua importância, não é essa a história a que nos lembramos durante esses dias.
O relato bíblico que ouvimos e estudamos hoje de manhã e os que leremos amanhã de manhã, estão para nos provar que não é de simplicidade que precisamos. Hoje de manhã lemos sobre o nascimento do patriarca Itshak, depois de muitos anos de infertilidade de Sara, e amanhã (já dando spoilers) leremos sobre o pedido de Deus para que Avraham, seu pai, o sacrifique em nome da fé. Pedido ao qual ele atende, aparentemente sem pestanejar.
Depois de tanto esperar pelo cumprimento da promessa divina de ter um filho, esperaríamos que houvesse uma defesa ferrenha por parte de Avraham para salva-lo. O que não aconteceu. Essa defesa acontece em prol de duas cidades, nas quais Avraham não conhecia ninguém (Sodoma e Gomorra).
Avraham agindo tão diferente em relação aos desconhecidos e ao seu próprio filho nos prova que a humanidade é complexa. Que nós somos complexos.
Se Avraham passasse por Elul, Rosh Hashaná e Iom Kipur, será que se arrependeria e refletiria sobre suas ações? Gostaria de pensar que sim. Que teria se arrependido de tentar sacrificar seu filho. Mas não por tentar salvar uma cidade de desconhecidos.
Complexidades e dificuldades enchem este mundo em direção a um futuro inesperado. Assim é a humanidade e cada um de nós. Não podemos esperar pelo simples e obvio.
Esse momento que estamos vivendo nos convida a olhar para essa complexidade. Para as nossas reações e pensamentos desconhecidos.
Finalmente chegamos a esse dia de abertura dos portões. O que será que descobrimos? O que será que Deus irá descobrir de nós esse ano?
Os portões que hoje estão abertos se preocupam muito pouco com nosso exterior. Quanta maquiagem ou perfume passamos. Se as roupas estão na última moda ou não. Se temos o melhor carro ou o celular do mercado. Tudo isso resulta irrelevante.
Podemos dizer que o exterior muitas vezes reflete nosso estado de espírito interior. Talvez forçar algo fora possa influenciar o interior. Porém não podemos esperar milagres, achando que somente ajustar o externo será suficiente para corrigir o interno ao invés de realmente enfrentar qualquer dificuldade interna.
Nosso verdadeiro potencial está dentro de nós e na conexão que temos entre as profundezas de nós mesmos com as profundezas do outro.
O pequeno Moishele de nossa história teve muita dificuldade de encontrar a si próprio para poder se vestir. Nós também temos dificuldade de encontrarmos a nós mesmos.
Desejo e espero que todo esse período possa nos desafiar a descobrirmos quem somos de verdade, debaixo da camada de roupas e maquiagens. Que a pergunta “Quem sou?” seja profunda, que atravesse nossas camadas externas e possamos encontrar tanto do que podemos nos orgulhar, e também do que não nos orgulhamos.
Que Moishele possa nos inspirar a descobrirmos quem somos e Avraham nos lembre de que nossas reações podem ser inesperadas.
Que possamos descobrir quem somos. Que possamos descobrir o porquê de agirmos de uma maneira ou de outra, para poder corrigir as reações que não gostamos e reforçar as boas. Para que nosso interior possa refletir naturalmente quem somos. Que a pergunta existencial: “Quem sou eu?” nos acompanhe permanente o ano todo nos transformando dia a dia.
Shaná Tová,
Fernanda Tomchinsky-Galanternik