Prédicas – rabino Michel Schlesinger

 

Ciência e religião 

“Dos mitos de criação do mundo de culturas pré-científicas às teorias cosmológicas modernas, a questão de por que existe algo ao invés de nada, ou, em outras palavras, ‘por que o mundo?’, inspirou e inspira tanto o religioso como o ateu.” 

Esta afirmação aparece no livro “A dança do Universo”, do físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, vencedor do prêmio Templeton de 2019. Considerado o “Oscar da espiritualidade”, o reconhecimento é dado a personalidades que contribuíram para reafirmar a dimensão espiritual da vida. 

“Embora ciência e religião abordem a questão da origem do universo com enfoques e linguagens que têm pouco em comum”, afirma o cientista, “certas ideias forçosamente reaparecem, mesmo que vestidas em roupas diferentes”. 

Rosh HaShaná é o aniversário do universo. Segundo a liturgia que repetimos durante o ano novo judaico, neste dia, há 5780 anos, o mundo teria sido criado. Mais especificamente, estamos celebrando o aniversário de Adão e Eva, criados no sexto dia da narrativa de Gênesis. Hoje seria, portanto, o  aniversário da Humanidade. 

 Muitos podem ter alguma dificuldade de se conectar com essa mensagem no mundo contemporâneo. Afinal de contas, a ciência aponta para a existência do homo sapiens há 200 milênios e um universo que possui quase 14 bilhões de anos. 

Existem ao menos três formas de se relacionar com essas aparentes contradições. A primeira, seria descartar a narrativa religiosa associando-na a uma etapa primitiva de nossa existência em que o conhecimento científico não estava disponível. 

A segunda possibilidade seria dizer que a religião revela uma sabedoria inquestionável que aponta para um enorme equívoco da abordagem científica. A última alternativa, mais complexa que as anteriores, seria sofisticar a nossa leitura religiosa por um lado, enquanto agregamos dimensão ética ao método científico por outro. Em outras palavras, a terceira alternativa é estabelecer um diálogo profundo entre ciência e religião. 

Com o advento da Hascalá, o Iluminismo judaico, ganhamos a possibilidade  de não apenas estabelecer um inédito diálogo entre o judaísmo e a ciência, como ver nesta conversa uma oportunidade única de enriquecimento para cientistas e religiosos. 

 Estive em Londres para um sabático de três meses e pude me aproximar do pensamento do rabino Jonathan Sacks, também ganhador do prêmio Templeton em 2016, com quem já tinha participado de encontros de diálogo inter-religioso. Na opinião de Lord Sacks, a ciência separa coisas para explicar como funcionam e a religião reúne coisas para entender o que significam. “Quando Darwin desenvolve sua teoria de seleção natural”, afirma Sacks, “ela parece ser incompatível com sua crença cristã […]. Mais tarde, percebemos que Darwin criou, sem ter esta intenção, uma das mais belas ideias religiosas, que é ‘o Criador fez a criatura, criativa”. “Assim”, diz o rabino inglês, “poderíamos resumir o darwinismo”. 

O número 5780 é um símbolo que nos convida a entrar em contato com princípios como “todos temos uma origem comum” ou “fomos criados à imagem e semelhança do Criador” ou ainda “devemos cuidar dos animais e do meio ambiente porque temos um destino comum”. Da mesma forma, a leitura dos demais mitos judaicos como metáforas recheadas de valores, nos traz a oportunidade de nos libertar de um fanatismo pouco instruído que vê na literalidade da vida, da religião e da história um valor absoluto. 

O obscurantismo nos dias atuais contamina a política, que desconfia de evidências científicas amplamente comprovadas como o efeito estufa e as consequências nefastas do aquecimento global, seja por malícia ou por ignorância. Em pleno século 21, existem pessoas que voltaram a acreditar que a terra é plana e existe inclusive um movimento chamado “terraplanismo”. 

 Mais do que nunca, a aliança entre religião e ciência é necessária para reafirmar nosso compromisso com um ativismo crítico, que incorpora o conhecimento científico e faz de sua defesa uma tarefa sacramente esclarecida. 

Meu professor de midrásh certa vez disse que uma mesa na literatura mítica judaica pode ser qualquer outra coisa menos uma mesa. A literatura judaica tradicional nos convida à constante interpretação e à interpretação da interpretação. O próprio judaísmo clássico insiste na ideia de que a Torá escrita foi dada junto com a Torá oral, reforçando a noção de que sem interpretação e tradição oral, o texto não tem qualquer relevância. 

Existe uma diferença central na formação de rabinos ultra-ortodoxos e aqueles que se preparam para o rabinato nas demais correntes do judaísmo: a formação acadêmica. 

Nós, rabinos liberais, somos obrigados a entrar nos estudos religiosos com algum título acadêmico e o rabinato é permeado por um estudo de pós- graduação científica. Isto faz com que a formação do rabino liberal dialogue com a formação acadêmica dos membros de sua comunidade e demais cidadãos da sociedade. 

Percebemos esta diferença com respeito à legislação religiosa que continua evoluindo por meio das responsa. Rabinos de distintas linhas religiosas respondem às perguntas de suas comunidades sobre os mais diversos aspectos da vida. A diferença relevante entre as ferramentas utilizadas para chegar a distintas conclusões é justamente a incorporação ou não no conhecimento científico. No processo de determinação da halachá presente nas comunidades ortodoxas, haverá resistência na incorporação de análises científicas por não se tratar de conhecimento judaico clássico. 

Assim, legisladores ortodoxos, como Moshe Feinstein ou Ovádia Iossêf, vão navegar apenas no universo judaico clássico para chegar a suas conclusões. No mundo liberal, a ciência será parte integral do debate. Desta forma, se existem trabalhos acadêmicos sobre os assuntos religiosos em discussão, a voz da ciência entrará no debate como mais um fator a ser levado em conta ao lado das fontes judaicas e, desta maneira, a ciência passa a ser uma fonte judaica por excelência. 

Por conta disto, as diferentes versões do judaísmo chegarão a diferentes conclusões sobre os mesmo assuntos. Um exemplo interessante é justamente o caso do tabagismo. Em algum momento, acreditou-se que fumar fazia bem à saúde. Havia teorias de que a nicotina ajudava na digestão e na circulação sanguínea. 

Depois de pesquisas acadêmicas, cientistas chegaram à conclusão de que fumar aumenta significativamente a chance de ocorrência de doenças crônicas. A partir desde momento, como causar dano proposital à vida humana é proibido pelo judaísmo, o rabino David Golinkin, do movimento Massorti, escreveu uma teshuvá proibindo o judeu observante de fumar. Na ortodoxia não existe esta proibição e isto se deve, principalmente, à dificuldade de incorporar o conhecimento científico no seu processo legislativo. 

 O transplante de órgãos é rotina nos hospitais do mundo inteiro. A doação de um órgão pode salvar vidas e não pode existir valor religioso maior do que este. O obscurantismo de teorias que envolvem a necessidade de se enterrar um corpo intocado para que, apenas assim, possa ser ressuscitado na vinda do Messias, já impediu potenciais doadores de dar o destino mais sagrado possível para seus próprios órgãos. A desinformação na era da informação faz com que muitos ainda acreditem que judeus não podem doar órgãos quando, na realidade, não poderia existir atitude mais judaica do que esta. 

Ao mesmo tempo, acredito que a religião pode contribuir com o debate ético cada vez mais necessário em função dos avanços científicos. A academia, sem a ética, pode ser fanática a ponto de transformar a ciência em uma religião fundamentalista. Isto, de fato, já ocorreu em momentos de positivismo científico e serviu de fundamento para episódios catastróficos de ditaduras e perseguições. 

Distanciar-se da noção de verdade absoluta e incorporar às suas práticas os mecanismos heterodoxos de intuição e acaso, embora não sejam ferramentas acadêmicas clássicas, foram as peças responsáveis por inúmeros avanços científicos. As contribuições da literatura ficcional e da própria fé religiosa à ética científica distanciam-na do fanatismo acadêmico. 

Marcelo Gleiser sintetiza: “A religião teve (e tem!) um papel crucial no processo criativo de vários cientistas”. 

A conversa entre religião e ciência permite que o obscurantismo de outrora seja substituído por uma fé esclarecida. Se, no passado, a religião serviu para explicar o funcionamento do universo, hoje a ciência desempenha este papel de maneira muito mais sistemática e bem sucedida. Cabe a nós a coragem de compreender que o papel da religião mudou. 

Esta mudança traz a oportunidade de uma sofisticação da experiência religiosa que não mais precisa dar respostas superficiais e definitivas aos anseios humanos, mas inspirar o homem e a mulher na busca de uma vida mais significativa e ética. 

Se quisermos nos engajar no fortalecimento da herança judaica, se a continuidade do judaísmo for relevante para nós, então teremos de superar o obscurantismo fanático e optar por uma religiosidade aliada à investigação científica de ponta. Conjugando o conhecimento disponível em cada geração com a constante busca de sentido ético que a religião estimula, estaremos nos matriculando no livro de uma vida, a um só tempo, esclarecida e sagrada. 

Shaná Tová!

Rabino Michel Schlesinger 

Monoteísmo ético

Na tarde de Iom Kipur, leremos a história de Jonas. Ioná ficou conhecido por sobreviver na barriga de um grande peixe, provavelmente uma baleia. No início da história, Jonas é convocado para salvar os habitantes de Nínive, mas o profeta foge para dentro de um barco. Quando, então, começa uma tempestade, Jonas desce para o porão da embarcação e dorme. Talvez este seja o motivo principal da escolha do texto para a leitura no Iom Kipur. Todos nós somos Jonas e precisamos despertar deste sono.

 A inovação teológica mais importante do judaísmo foi a noção de que existe apenas um Deus. A ideia do monoteísmo, contudo, não foi introduzida de maneira imediata. 

 Segundo os historiadores da religião, os proto-Hebreus acreditavam que existiam diversos deuses, mas o Deus de Israel era mais poderoso que os demais. Essa crença se expressa em passagens bíblicas como “Quem se compara a Ti entre os deuses, Adonai?” (Êxodo 15:11). 

 Em uma segunda etapa de desenvolvimento filosófico religioso, teríamos passado pelo dualismo, uma crença de que além de Deus haveria uma outra força responsável por tudo de ruim que acontece no mundo. Expressões desta figura aparecem nas descrições da Cabalá, a mística judaica, como o satán, um diabo mitológico judaico, ou o gueinóm, o inferno. 

Somente mais tarde, nossos antepassados teriam aderido a um monoteísmo puro.

 O monoteísmo não veio sem sua carga de dificuldades teológicas. Se acreditamos em um único Deus, todo o bem que existe no mundo se origina neste Deus, e todo o mau também. O profeta Isaías expressa essa convicção quando diz: “Deus cria a luz e a escuridão, faz a paz e cria o mau” (45:7).

 Esta unidade divina, no entanto, não deve ser confundida com uniformidade. Dizer que Deus é um, é diferente de dizer que Deus é uniforme. Dizer que Deus deseja nossa unidade ou harmonia não significa que Deus espera de nós uniformidade. O Deus único criou um mundo diverso para nos ensinar a ética do convívio. 

Se nossa maior contribuição teológica foi o monoteísmo, nossa maior contribuição social foi o monoteísmo ético. Segundo esta noção, nos aproximamos de uma dimensão mais sagrada da vida na medida em que nos comprometemos com a ética.

 Na busca do ético, o monoteísmo passa a não somente apreciar a diferença, como a ver nela ferramenta essencial. Quanto mais amplos forem os debates sociais, maior será a expressão ética dos valores sagrados. A unidade de Deus se expressa na somatória das diversas vozes da sociedade.

 A história de Jonas não é a única vez na literatura bíblica que vemos profetas tentando escapar de suas responsabilidades éticas. Quando Deus convoca Moisés para retirar o povo do Egito, o líder tenta se esquivar alegando problemas de fala. Quando o profeta Jeremias é chamado por Deus, responde que é jovem demais para a função (1:6).

 Nós também estamos sendo convocados por Deus diariamente e nos escondemos nos porões, alegando dificuldades de fala ou questões de idade. No entanto, é nossa capacidade ética de responder às necessidade da sociedade que nos aproxima, por meio da valorização da diversidade, da unicidade de Deus.

 A mensagem do Iom Kipur é de que cada um de nós é um Jonas com uma missão única a ser cumprida. Teremos a oportunidade de passar a vida fugindo ou, ainda, poderemos atender ao chamado e assumir nossa parcela de responsabilidade. 

Temos nossas divisões. Somos muitas vezes obrigados a discordar em diferentes assuntos, mas isto não nos deveria impedir de continuar nos respeitando e buscando formas de agir como grupo.

 Na minha experiência em Londres durante o sabático de três meses no início deste ano, participei de um seminário sobre o papel dos religiosos em uma sociedade fragmentada. 

 Em função do Brexit, o referendo que determinou a saída do Reino Unido da União Europeéia, aquela sociedade viveu e vive um momento muito duro de divisão. O assunto foi responsável por separar amigos de décadas, sócios deixaram de se entender, vizinhos brigaram e familiares foram excluídos de grupos de WhatsApp.

A Igreja Anglicana e a comunidade judaica da Inglaterra se uniram para discutir qual seria o papel dos religiosos na reparação de uma sociedade fragmentada. A questão colocada era “Como resgatar a noção ética de que o Deus único se encontra justamente na diversidade”. 

 Enquanto estudava em Londres, pensei muito sobre as consequências das últimas eleições na nossa sociedade brasileira. Infelizmente, cá como lá, a polarização que se criou fez com que muitos ambientes se tornassem tóxicos. Para continuar convivendo, política tornou-se um assunto proibido em determinados lugares. Em outros, a separação foi tamanha que impede, até hoje, que pessoas que se amam muito continuem convivendo de maneira saudável.

Não é possível que os partidos políticos, os times de futebol, as religiões, que foram criados pela humanidade para enriquecer as experiências humanas, sirvam de motivo para dividir pessoas de maneira definitiva.

 A maneira como representamos o Deus invisível no mundo é nos fazendo muito visíveis. Apenas quando rompemos a omissão e nos tornamos presentes, aproximamos Deus de nossas vidas e das vidas das pessoas à nossa volta. Assim, exercitamos um monoteísmo verdadeiramente ético.

 Que a unidade de Deus nos inspire a superar o empobrecimento da uniformidade. Que vejamos nas nossas diferenças, oportunidade de crescimento. Quando chegar a tempestade, que tenhamos a coragem necessária para acordar, sair do porão e atender aos chamados de uma sociedade diversa.

 Que sejamos confirmados no livro da ética do convívio e que seja este o caminho na direção ao Deus único.

 Gmar Chatimá Tová!

Rabino Michel Schlesinger