A biologia diz que somos principalmente água. Eu gostaria de sugerir que somos principalmente nossas memórias. Afinal, tudo que sabemos é memória, tudo que sentimos pode surgir em relação a memórias. E tudo que fazemos também. Vivemos e somos a partir do que registramos e os registros são memórias.

“A memória é nossa parte inviolável… está acima de todas as vicissitudes… não pode ser afetada pela pobreza, nem pelo medo… não se pode perturbá-la ou roubá-la de se possessor” , disse o pensador grego Sêneca.

Tendo a concordar e discordar. Concordo com que ninguém pode, ao menos por enquanto, possuir nossas memórias, ou nos despojar delas. Talvez a memória seja o que mais ou o único que realmente possuímos e também somos. Entretanto, existem processos físicos e afetivos de esquecimento e distorção ou transformação das memórias. Nem sempre lembramos das mesmas coisas nem da mesma forma. 

O escritor francês Marcel Proust sugere que além da memória racional que nos permite lembrar de uma fórmula matemática, existe uma memória afetiva. Ela é involuntária, surge sozinha a partir de um sabor, um aroma, uma música que nos transporta a um tempo passado para voltar a vivê-lo. 

Acredito que o judaísmo se encontra no meio. Nem sustenta que a memória está garantida e sempre disponível invariavelmente, como Sêneca, nem acredita que ela é totalmente involuntária e fica à mercê das experiências aleatórias que formos vivenciar, como disse Proust. 

A memória pode ser acionada pela vontade de querer lembrar, de desejar voltar a sentir aromas e sons e sabores e sentimentos e emoções. Uma memória pode ser revisitada em momentos diferentes e ser vista, interpretada e avaliada de formas diferentes. Não lembrarei do nascimento dos meus nem da partida de meu pai aos 45 anos ou quando tiver 90 anos. Tampouco o efeito que em mim causarão essas memórias será sempre o mesmo. A memória pode ser transformada e transformadora. Memórias podem morrer, reviver e recriar sentimentos. Memórias podem se reacomodar e nos reacionar.

Se realmente somos principalmente nossas memórias, é por meio do modo como as guardamos e as revisitamos que poderemos ser outros e nos aprimorar.

Por isso o ano novo judaico se chama, além de Rosh HaShaná, Iom Hazikaron, dia de recordação, e 10 dias depois, em Iom Kipur, no momento mais alto do processo de renovação de nossa personalidade e de nossas vidas, nos manda: izcor! Lembre! Lembrar é um mandamento, um imperativo, porque através dele vivemos e evoluímos.

Que possamos lembrar do melhor dos nossos entes queridos, de nossas vidas com e sem eles e inspirar os que nos sucedem no tempo através das melhores memórias que neles, deixemos.

 

Rab. Dr. Ruben Sternschein