Prédicas – rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik

Buscando o que é realmente meu

Gostaria de convidá-los para uma viagem. Vamos até uma aldeia, chegando lá andamos pelas ruas cumprimentando as pessoas até chegar a uma casa afastada. Batemos na porta e somos muito bem recebidos por um homem, muito simples e quase sem posses, mas extremamente feliz. Nos convida a entrar, tomar um café.

Um homem que tinha muito pouco, mas muito feliz com sua família, com sua pequena casa, com seu trabalho, com seus amigos, enfim, feliz com sua vida. 

Na mesma aldeia conhecemos outro homem, muito rico, que vivia em uma mansão, tinha empregados, havia viajado o mundo e tinha uma bela família, todos com muita saúde. Mas diferentemente do primeiro homem, era muito, muito infeliz. Não apreciava nada do que tinha e vivia desgostoso com a vida.

Esse homem muito rico ficou sabendo da existência daquele primeiro e de sua felicidade. Passou a observá-lo para tentar entender a origem de tanta alegria. Observou por semanas, meses, sem conseguir identificar nada que lhe chamasse atenção para justificar porque vivia sua vida tão feliz, sendo tão pobre. Durante todo esse tempo foi crescendo dentro dele uma inveja enorme. Como podia ser que aquele que não tem nada fosse tão feliz? Isso não podia ficar assim, ele, que tinha de tudo era infeliz, não conseguia aceitar a felicidade do outro.

Bolou um plano para mudar aquele simples homem, já que não pôde mudar a si mesmo. Deixou na porta da sua casa uma sacola cheia de moedas de ouro. Havia 99.999 moedas.

Quando amanheceu e o homem viu a sacola, logo a levou para dentro e agradecendo a Deus por terem pessoas tão generosas na aldeia começou a contar as moedas.

1, 2, 3, 4, 5,… 100,… 200,… 500,… 1000… 10.000… 50.000, 90.000… 99.998, 99.999…

– Puxa, onde está a moeda número 100.000? Deve ter caído em algum lugar quando abri a sacola.

Começou a procurar a moeda que faltava. Chamou sua família e todos começaram a procurar a moeda que faltava. Procuraram entre os poucos móveis da casa. Buscaram também na entrada da casa. O simples homem nunca mais deixou de procurar a moeda. Tornou-se um homem amargo e inconsolável.

Pirkei Avot diz que o rico é aquele que é feliz com o que tem. Segundo essa visão, nosso pobre homem seria extremamente rico até o momento de ser financeiramente rico. Para uma vida naquela aldeia aquelas moedas de ouro seriam o suficiente para que não tivesse que trabalhar nunca mais, e ainda deixar uma boa herança para seus filhos. Mas nesse momento ele se vê transformado. Faltava uma.

Será que isso quer dizer que devemos viver acomodados? Felizes com o que temos? Sem buscar alcançar objetivos maiores em nossas vidas? Sem nos esforçarmos?

Estamos começando o ano. Olhando para todas as possibilidades que temos perante nós. Será que devemos simplesmente deixar todas elas passarem reto frente aos nossos olhos, já que devemos ser felizes com o que temos? Ou será que existem algumas buscas e esforços que devemos fazer para termos algo ainda melhor para nós, nossa família, nosso planeta?

No mesmo Pirkei Avot, compêndio de máximas rabínicas A Ética dos Pais,  Rabi Tarfon nos diz que não podemos abandonar nossas responsabilidades de fazer deste mundo um lugar melhor para todos. Será que isso quer dizer que somente deveríamos buscar coisas que sejam boas para o coletivo, e se é algo pessoal não?

A tradição judaica não é asceta, na qual o mundo físico é irrelevante, nem uma tradição que ignora os prazeres pessoais. Maimônides é um grande defensor do nosso aprimoramento intelectual. Segundo ele, somente assim poderemos chegar mais perto de compreender o que é Deus, o que Ele quer de nós e como devemos viver nossa vida. Esse aprimoramento é extremamente pessoal e individual. Mas além do racional, Rambam também acredita que devemos atender aos nossos desejos físicos e sensitivos, através do esporte, arte, cultura, para que nosso intelecto não fique preso a esses desejos. 

Estamos começando um novo ano. Um ano em que muitas coisas serão novas e talvez ainda não possamos prevê-las. Porém muitas serão renovadas, outras serão mantidas e outras ainda serão deixadas de lado. Estamos no momento ideal para refletirmos quais entrarão em cada uma dessas categorias. 

Para saber se algo deveria ser renovado, apenas mantido ou abandonado, devemos colocá-lo em perspectiva com toda a nossa vida, nossas ideias e ideais. Além de entender como tudo isso se insere em nossa comunidade e no mundo.

Muitas vezes seguimos em busca de algo de forma automática e sem realmente pensar. Ficamos tão acostumados a simplesmente ir atrás de algo que depois de um tempo não sabemos nem o porquê. Como uma moeda que achamos que está perdida, mas que nunca existiu… Assim como esse homem que tinha sido simples e feliz, nós também ficamos presos a buscas sem sentido.

Até que ponto devemos buscar prazer, melhorar a nós mesmos e até que ponto devemos nos acomodar e sermos simplesmente felizes com o que temos?

O critério talvez seja que tipo de energia colocamos nas nossas buscas. O que deixamos de lado ou temos que sacrificar para chegar ao nosso objetivo. Ou ainda, qual a razão para estarmos buscando algo. 

Talvez o Eizehu Ashir, Hasameach Bechelko, quem é rico, aquele que é feliz com o que tem, de Pirkei Avot, não nos diz para sermos acomodados, e sim para conhecermos a fundo o que temos. Não só no mundo material, mas também no mundo racional, intelectual e emocional.

Tudo o que nós somos faz parte do que temos, nossas vontades e desejos. A busca sem sentido da moedinha que faltava era porque era uma busca de algo que não lhe pertencia. Algo que ele não trabalhou para conseguir, e na realidade nem queria.

Deus nos abre a porta para um novo ano. Um ano em que podemos escolher novamente o que queremos para nós, para aqueles que nos rodeiam e para o mundo. Escolher e trabalhar para que cada uma de nossas escolhas aconteçam. 

Deus nos abre a porta também para colocarmos para fora tudo aquilo que não nos pertence realmente. Tudo o que fazemos mecanicamente, que fazemos porque alguém nos colocou essa vontade.

Que possamos aprender a selecionar o que faz parte de nós e sermos felizes com isso, sem querer importar vontades e desejos alheios.

Que possamos fazer buscas com sentido para nos tornamos pessoas melhores e fazer desse mundo um lugar melhor.

Que possamos nos alegrar com o que temos e com o que realmente queremos ter. Que possamos ser felizes com o que temos e queremos ter!

Shaná Tová,

Rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik

Aprender também a perdoar

Diante dos enormes portões que se abriram em Rosh Hashaná, nos sentimos pequenos. Um portão aberto especialmente para ouvir nossos pedidos de desculpas, nossos arrependimentos e também nossos desejos. Para ouvir novos compromissos e desafios para este ano que entrou. Esse portão esteve aberto pelos últimos 10 dias e agora está prestes a se fechar. 

Estamos frágeis pela fome e cansaço, mas ainda temos mais uma hora reunidos vendo esse portão se fechar. Temos nossa última chance de nos fazer ser ouvidos, como indivíduos e como comunidade. De elevar nossa tefilá. Cada um precisa decidir se estará na espera passiva ou aproveitará ao máximo este último momento tornando-o transcendente. 

A tefilá Neilá está começando, tendo como objetivo garantir nosso lugar no grande livro da vida, e principalmente o de deixar em evidência aquelas pequenas mudanças tão necessárias em nós mesmos para sermos pessoas melhores no ano que entrou.

Heschel disse que a tefilá só tem sentido se tenta derrubar e destruir as pirâmides dos calos, ódios, oportunismos e falsidades. Mas não dos outros, de dentro nós mesmos.

O grande dia do perdão está terminando. Será que fomos perdoados por todos os nossos erros? Iom Kipur é o dia em que, depois de um arrependimento genuíno, estaria garantido o perdão.

Mas apenas aqueles erros e arrependimentos que remetem só a Deus. Aqueles erros que afetaram as pessoas precisam de um pedido real de perdão a quem tenhamos magoado.

Repetir diversas vezes ashamnu, bagadnu, gazalnu, somos culpados, traímos, roubamos e essas longas listas entre o Vidui e o Al Chet, não diminui nossa responsabilidade com aquelas pessoas a quem traímos ou roubamos.

O pedido expresso, cara a cara, já deveria ter acontecido. Será que ainda temos tempo? Os portões estão se fechando, podemos até ouvir o ranger das dobradiças. Pedidos de perdão… Muitas vezes falamos sobre a importância de reconhecer nossos erros e pedir perdão. A liturgia desse dia solene que está por terminar está repleta de reconhecimento desses erros e de pedidos de perdão. Slach lanu, perdoa-nos.

Na esperança, neste dia, de recebermos o perdão divino, será que enxergamos que nós também temos o papel de perdoar? Somos capazes de perdoar?

Diferentemente de Deus, que pode ver nossa honestidade direto de nossos corações, nós temos que olhar nos olhos de quem nos pede perdão e acreditar em seu arrependimento e sua vontade de mudar. Como saber realmente?

O Dr. Moises Groisman, psiquiatra especialista em perdão diz que o ato de perdoar não é em relação ao ato em si, e sim à pessoa que praticou o ato. Porque não somos capazes de apagar o que aconteceu.

Nós não podemos decidir esquecer o que aconteceu, também não podemos voltar atrás, nem nós, nem quem nos ofendeu, por mais que gostaríamos.

Se imaginarmos a relação entre as pessoas como um vaso delicado, porém muito colorido, onde cada cor poderia remeter às diversas experiências entre ambos, os atos que quebram a confiança levariam esse belo vaso a vários cacos. É infantil imaginar que o perdão faria com que pegássemos todos os cacos reconstruindo a relação tal como era antes.

Existe uma técnica japonesa que se chama kintsugi, que consiste em pegar os pedaços e remendá-los com ouro. Podemos voltar a ter um prato, uma xícara, um vaso. Certamente diferente do original, possivelmente mais belo. O kintsugi entra na filosofia de aceitação do imperfeito. Assim como uma pessoa deve aceitar que é imperfeita, devemos também compreender a relação com os outros como imperfeita e passível de muitos erros de um lado e de outro.

 O kintsugi, tenta reconstruir a peça quebrada, diferente, evidenciando a quebra, mas reconstruída. Eu gostaria de convidá-los a outra alternativa. Gostaria de convidá-los a juntar todos os cacos daquele belo vaso colorido quebrado.

 Perdoar, muito longe de esquecer o que foi feito, muito longe de tentar reconstruir uma relação exatamente igual ao que foi, ou talvez parecida, poderia ser o abrir-se à oportunidade de construírem um mosaico entre todas as partes envolvidas. 

 Um mosaico que não tem absolutamente nenhum compromisso em manter as formas anteriores, a função anterior, de vaso, de xícara, de prato. Um mosaico que se aproveita de todas as cores proporcionadas pelo relacionamento anterior e transforma em algo novo. Numa nova possibilidade de se relacionar.

 Os portões dos céus estão se fechando, mas nós, aqui, não precisamos nos fechar. Assim como investimos tempo, esforços e palavras no pedido de perdão, nos convido a abrir nossos corações à essa possibilidade de construir mosaicos, transformando relações abaladas pelo conflito em algo que possa ser ainda mais belo.

 Que possamos garantir nossos nomes assinados no livro da vida por pedirmos perdão e também por perdoar.

 Que a última repetição do Vidui não seja apenas para reconhecer, mais uma vez, possíveis erros nossos, mas também que  permita que vejamos se podemos perdoar aquelas pessoas que erraram conosco

 Gmar Chatimá Tová,

Rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik