O nome da primeira parte da parashá dupla desta semana, Acharei Mot, nos remete de volta ao episódio da morte dos dois filhos de Aharón, Nadav e Avihu, sobre o qual lemos há algumas semanas [1]. Naquele episódio, os dois filhos ofereceram um “fogo estranho” a Deus e foram consumidos pelo fogo. Moshé orienta seu irmão e sobrinhos a não demonstrarem sinais de luto pela morte de Nadav e Avihu e Aharón parece aceitar a instrução sem questionamentos. 

De volta à leitura desta semana, em sua tradução literal, Acharei Mot (o título da parashá) significa “depois da morte de…” porque, nela, Deus ordena instruções que Moshé deve passar a Aharón na sequência da morte de Nadav e de Avihu. 

Vivemos em uma época de comportamentos ambíguos com relação à morte. De um lado, os avanços científicos dos últimos séculos ampliaram de forma significativa nossa expectativa de vida, desenvolvendo remédios para doenças tratáveis, melhorando as condições sanitárias de parte considerável da população (ainda que muito trabalho ainda siga a ser feito nessa área), criando vacinas que possibilitaram a prevenção e até a erradicação de algumas doenças. A mortalidade infantil no estado de São Paulo, por exemplo, caiu de 188,9 por 1.000 nascidos vivos em 1900 para 10,7 por 1.000 nascidos vivos em 2018, uma redução de 94%! [2] Com esses ganhos, não causa surpresa que a morte tenha se tornado um tabu entre nós. No passado, convivia-se mais com a morte, especialmente com a morte jovem, e, por isso, o assunto era tratado com maior naturalidade. Hoje, vivemos como se nossas vidas fossem durar para sempre e não nos preparamos para nos despedirmos de nossos entes queridos quando eles se vão. Vivemos como se sempre fôssemos ter uma chance a mais para perseguir um sonho ou para ter uma conversa importante; quando a morte chega, na grande maioria das vezes, nos pega despreparados…

O outro lado da ambiguidade, no entanto, é que a grande disponibilidade de estatísticas faz com que fiquemos atordoados entre tantos números das nossas vidas. Perdemos a sensibilidade para a singularidade de cada vida humana, para a dor imensa que a morte de uma única pessoa pode causar. A tradição judaica ensina que “salvar uma vida é como salvar todo o mundo” [3] mas é difícil verdadeiramente assimilar este conceito quando as mortes são contabilizadas aos milhares. Por exemplo, a média móvel dos mortos por Covid no Brasil praticamente quadruplicou desde o começo do ano [4] e, após nos chocarmos por algumas semanas com o aumento, logo nos acostumamos e voltamos a nos comportar como se a doença não trouxesse risco algum.

Tudo muda, é claro, quando perdemos alguém muito próximo. O silêncio, como o de Aharón, pode ser a resposta de alguns à morte de uma pessoa da família, mas há também quem chore, quem grite, quem fique com raiva, quem queira aproveitar a sua vida ao máximo antes que ela também termine ou quem perca totalmente a vontade de viver. Para alguns, a perda lhes ajuda a ganhar perspectiva sobre o que é realmente importante na vida, enquanto, para outros, tudo perde a perspectiva e o significado. A dor pela perda é absolutamente subjetiva e não segue padrões pré-definidos. Há quem chegue ao final da shivá tendo-a processado completamente, mas há também quem só se dê conta da dimensão da sua perda meses depois de terminado o período de shloshim. Parte do processo de luto inclui aceitar que não há fórmulas prontas e sermos generosos com nós mesmos e com aqueles à nossa volta.  O sábio Hilel nos ensinou que não devemos julgar outra pessoa até que estejamos no mesmo lugar que ela [5] e o lidar com a perda pela morte é uma das situações em que este princípio deve ser aplicado com especial afinco.

Na parashá desta semana, após a perda dos seus filhos, e sem ter tido a oportunidade de processar seu luto, Aharón começa a receber as instruções e se ocupar das funções especiais do sacerdócio. Que seu exemplo dolorido nos sirva de lição para que a morte não seja tratada como tabu nem tampouco ignorada. A morte de cada pessoa é um evento natural, parte da vida, e, mesmo assim, um momento no qual um mundo inteiro é destruído.

Que neste shabat, cada vida que nos tocou e que partiu deste mundo possa ser lembrada e que sua luz possa continuar iluminando o nosso caminho.

 

Shabat Shalom,

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Lev. 10:1-7

[2] https://bit.ly/3gs1CBB

[3] Mishná Sanhedrin 4:5

[4] https://bit.ly/3dDGG91

[5] Pirkei Avot 2:4