As muitas formas de justiça: ontem, hoje e amanhã

Nas últimas semanas, foram inúmeras as reuniões a distância com famílias e jovens se preparando para o B-Mitsvá, todos frustrados com o adiamento de cerimônias que tinham sido agendadas para este primeiro semestre e para as quais os jovens vinham se preparando há meses. Muitas vezes, eu ouvi deles a expressão “não é justo!”. Não culpavam ninguém, reconheciam que na conjuntura atual o adiamento da cerimônia era a decisão correta mas, ainda assim, reclamavam da injustiça da situação.
 
“O que é justiça?” A pergunta abstrata, sobre a qual filósofos têm se debruçado desde o princípio, ganha ares de concretude quando enfrentamos situações em nossas vidas nas quais precisamos responder a situações em que nos parece que nosso conceito de “justiça” foi violado.
 
Na tradição judaica, a preocupação com a Justiça é permanente — somos instruídos, por exemplo, a “buscar a mais absoluta justiça” [1] e Deus é frequentemente identificado como Justo [2]. Mas qual o conceito de justiça do qual estamos falando? Será da abordagem punitiva, na qual quem comete um erro precisa ser punido para desencorajar outras pessoas de cometerem o mesmo ato, ou da visão restaurativa, que busca restabelecer o equilíbrio abalado pelo erro cometido?
 
Na parashá desta semana, a lógica da justiça segue a perspectiva da Lei de Talião: “fratura por fratura, olho por olho, dente por dente” [3]. Assim, quando um dano é causado a alguém, o texto parece nos instruir a buscar a justiça causando dano similar ao perpetrador: se alguém machuca outra pessoa, deve ser machucada da mesma forma; se uma pessoa mata outra, também deve ser morto.
 
Já na época da Mishná (220 EC), esta perspectiva deixava os rabinos muito desconfortáveis. “Não pode passar pela sua cabeça que o texto da Torå seja lido literalmente”, eles afirmam no Talmud [4]. Muitos séculos antes de Mahatma Gandhi, os rabinos já reconheceram o conceito de que “olho por olho e o mundo terminará cego.” Em um sistema no qual apenas a justiça punitiva impera, a ordem se institui pelo medo, mas não se desenvolve um sistema de solidariedade social no qual a comunidade busca, conjuntamente, reparar o dano causado.
A solução para o desconforto sentido pelos rabinos ocupa várias páginas do Talmud da Babilônia e determinou que uma compensação financeira deveria reparar o dano causado. É claro que isso não é possível em todas as situações: dinheiro nenhum poderá trazer de volta uma vida perdida e, mesmo em casos de outras ofensas, há traumas muito difíceis de serem superados. Mas a ideia de que a busca por justiça deve buscar reparar o equilíbrio estava firmada.
 
A re-leitura radical dos rabinos para esta difícil passagem criou precedentes importantes para a forma como a tradição judaica evoluiu: de um lado, permitiu que discordássemos de regras determinadas pela Torá e que tivéssemos, nós mesmos, estratégias de leituras alternativas; de outro lado, reconheceu a multiplicidade dos conceitos de “justiça” e permitiu que vislumbrássemos a forma como estabeleceríamos um mundo mais justo.
 
Como será a justiça que construiremos quando sairmos deste longo túnel de isolamento no qual nos vemos hoje? A pandemia expôs algumas injustiças na forma como estruturamos nossos bairros, nossas cidades, nossa sociedade em geral. Será que, ao questionarmos não apenas as regras da Torá, mas também outras regras que aceitamos como se imutáveis fossem, seremos capazes de construir um mundo mais igual, mais humano e mais justo? Tomara que sim!
 
 
Shabat Shalom
Rabino Rogério Cukierman
 
 
[1] Devarim 16:20
[2] Por exemplo, Salmo 119:137
[3] Vaicrá 24:20
[4] b Bava Kama 83b