Um mandamento estranho aparece no trecho da Torá que lemos esta semana: “circuncidar o coração do prepúcio que puder obstaculizar sua flexibilidade” (Deuteronômio 10:16).
Duas perguntas destaco dentre as leituras que o acompanharam ao longo dos séculos:
- Qual seria esse prepúcio figurativo?
- Quem faria essa circuncisão?
O prepúcio do coração seria, na minha opinião, uma alusão a qualquer barreira que impede sentir, qualquer obstrução à emoção. O contexto do versículo esclarece que se trata de emoções construtivas, de se abrir a sentir, perceber, reparar, considerar e ponderar de um modo maior. (Claro que existem emoções destrutivas também, como o rancor, a inveja, o ódio, a vontade de apagar o outro, seu sucesso ou sua felicidade. Às vezes, inclusive, precisamos de barreiras contra emoções auto-destrutivas).
Na semana que termina celebramos Tu BeAv, a festa talmúdica do amor, com uma ênfase especial na diversidade das formas do amar. Amor fraternal, amor familiar, amor transcultural, amor “trans-social”, entre outros. Tivemos a oportunidade de ouvir a história de um casal homossexual que permaneceu quase 40 anos junto até que a morte os separou, e de um casal heterossexual que começou há 19 anos, quando o noivo tinha quase 80 anos.
Recebemos muitas palavras de apoio, entre as quais salienta-se a oportunidade de tirar velhos véus dos olhos do coração e se permitir valorizar esses relacionamentos menos convencionais, e menos vistos nas nossas mídias. Tirar prepúcios.
Todos trazemos e tecemos “prepúcios” a nossa razão e a nossa emoção. O preconceito, a raiva, a mediocridade e a superficialidade contribuem com eles. A abertura, a sensibilidade, a profundidade, o espírito crítico e o amor conseguem retirá-los.
Em alguma parte das entrelinhas da parashá pareceu a alguns leitores como se a história pessoal, nacional ou humana seria a ferramenta de Deus para nos ajudar nessa circuncisão. Para outros leitores, pelo contrário, apenas nós podemos querer ver, sentir e considerar de outro modo.
Alguns acreditam que as nossas idéias são produto de conclusões determinantes. São lógicas que se nos impõem pela sua evidente razão. Outros sustentam que tanto as emoções como as ideias sempre são escolhidas. Com mais ou menos consciência dessa liberdade.
Embora não tenhamos como provar uma ou outra postura, acredito que a segunda é a mais corajosa.
Que tenhamos a coragem de escolher circuncidar os prepúcios que nos impedem de ver, pensar e sentir o melhor.