A inesgotável oferta de atividades e conteúdos da era em que vivemos desafia qualquer chamariz. Qualquer proposta precisa demonstrar competitividade na hora de responder ao crivo da pergunta: para quê, ou a quê está convocando?

A parashá da semana tem como título “Chamou”, e abre o livro que denomina as festas “sagradas convocações”. 

Neste primeiro momento, o chamado se refere a uma ação que, à primeira vista, ninguém de nossa época atenderia. Nem de séculos atrás. Trata-se dos sacrifícios ou oferendas no Templo. 

Embora os tenhamos superado com a reza, o arrependimento e as boas ações, existiam neles duas particularidades que se perderam. A primeira era a doação como ato religioso. Viver a religiosidade significava dar algo de si. Seja para pedir, para agradecer, para expiar, ou simplesmente para pertencer à comunidade, ou para sustentar a rotina religiosa. Já nossa religiosidade enfatiza o pedido ou a celebração ritual. A segunda particularidade dos sacrifícios era a capacidade de purificar.

Um dos sacrifícios detalhados nessa parashá chama-se chatat, e foi traduzido geralmente como pecado (da palavra chet). Entretanto, as situações nas quais essa oferenda se aplica, não incluem pecados, necessariamente. Algumas se referem apenas a pessoas que se envolveram com objetos ou situações que se consideravam impuras, como o abandono de um corpo. Mas as mais interessantes são as que denunciam a indiferença ética. 

Alguém que viu uma injustiça, uma falta de retidão, uma atitude não ética e se recusou a denunciá-la devia trazer como arrependimento um chatat. 

O que teriam em comum as duas situações para precisar de um mesmo sacrifício? O que vincularia o abandono de um corpo e a falta de ética? 

O cientista bíblico Jacob Milgrom começa um caminho ao sugerir que chatat deve ser entendido como purificador, vindo da palavra lechate ou chitui (desinfectar, desinfecção).

O rabino Itzchak Greenberg de Nova York complementa, e sugere que em ambos os casos há falta de comprometimento. Abandonar um corpo é falta de comprometimento com a vida e a morte. E a falta de ética é falta de comprometimento com as normas sociais que garantem a vida e evitam a morte. Ambos assuntos são um desvio do mais essencial da existência humana e por tanto a impurificar. 

Vivemos um dos momentos mais trágicos da história da saúde física dos brasileiros. Mais negligentes no cuidado oficial dos corpos de todos e todas. Qualquer desvio da prioridade de proteger as vidas da população é, ao mesmo tempo, abandonar seus corpos e a ética, pois se a ética se relaciona com o bem, não pode haver maior e mais urgente bem que promover o cuidado da vida de todos.

O sacrifício chatat não poderia resolver essa situação, mas ao menos ajudaria a fortalecer a urgência de sua denúncia.

 

Shabat shalom,

Rabino Ruben Sternschein