O desafio da autenticidade

A famosa história do rabino Zuzia conta que, no leito de sua morte, o encontraram seus discípulos chorando.

Por que choras, mestre? — lhe perguntaram.

Se, ao chegar no céu, me perguntarem por que não fui como Moisés, ou como Abraão, ou ainda como minha mãe, saberei o que responder. Mas temo que me perguntem por que não fui Zuzia… — foram suas últimas palavras.

A autenticidade, sermos nós mesmos, é um grande desafio. Especialmente na era das redes sociais e em circunstâncias tão cambiantes e imprevisíveis como as que vivemos.  

As redes sociais são um desafio, pois exigem uma linguagem, uns conteúdos e umas imagens que inibem verdades e puxam meias verdades. Nas redes tudo deve ser curto e rápido, sem tempo para aprofundar nem para mostrar diversos lados de uma verdade, situação ou pessoa. Nas redes sociais todos aparecem felizes, viajando, dançando, na praia, no restaurante. Nunca na depressão, na incerteza, no medo, na tristeza, na decepção ou na ilusão impossível.  As circunstâncias cambiantes desafiam nossa autenticidade, porque muitas vezes não nos dão tempo para encontrar o verdadeiro “eu” e para esclarecer o que realmente pensamos, sentimos e queremos diante delas, acabando por repetir o que outros dizem e fazem.

Ser autêntico é um desafio porque antes de perguntar “como”, precisamos perguntar “o que”. Antes de verificar como nos mantermos fiéis às nossas verdades, devemos nos perguntar quais são essas verdades e de onde elas vêm a nós. Como escolhemos elas? Qual é o verdadeiro Zuzia de cada um diante da pandemia, dos que não querem ficar em casa e aglomeram e disseminam o vírus, diante dos que não podem porque não conseguem sustentá-la se ficarem; e dos que nem casa têm onde ficar? Qual é o verdadeiro Zuzia de cada um diante da comunicação cibernética, o afastamento dos velhos, a vulnerabilidade de todos? Qual é o verdadeiro Zuzia diante da oportunidade de se encontrar mais com si próprio e verificar os verdadeiros desejos e as verdadeiras aspirações, de viver com muito menos consumo, de ter mais do “fora” entrando em casa? 

A parashá da semana fala da liberdade proclamada no ano sabático e no ano do jubileu e a chama de “dror”, que significa “pardal”. Um rabino linguista medieval sugeriu que esse pássaro foi escolhido para denominar a liberdade pois ele “mora tanto na casa como no campo”.

Acredito que a explicação, sendo ou não verdadeira do ponto de vista linguístico ou antropológico, guarda uma beleza e uma profundidade ímpares no desafio que apresenta. Se entendi bem sua intenção, a casa do pardal é o campo, mas ele consegue viver numa casa urbana como se estivesse no campo. A liberdade dele consiste em que ele sempre é ele mesmo em todas as circunstâncias. 

Mas o que isso significa na prática? Será que ele se abstrai das circunstâncias como se não existissem para se manter fiel a si próprio? Ou talvez ele as interpreta de modo que lhe permitam continuar sendo ele próprio? Ou ainda se reacomoda nas circunstâncias cambiantes para poder continuar a ser ele próprio? No primeiro caso seria voar pela casa fazendo o que quiser sem se importar com ninguém. No segundo caso seria considerar a beirada de uma mesa ou de uma cadeira como se fosse um galho e dizer a si próprio que se trata de um galho. No terceiro caso seria aceitar que é uma mesa que pode funcionar como galho para ele e tentar desfrutá-lo e senti-lo como galho, ou ainda fazer espaço a uma nova sensação. 

Nos três casos trata-se de um diálogo entre a verdade interior e a exterior que garantirá a liberdade da autenticidade.

Que possamos voar nos campos como nas casas com a liberdade do pardal para trazer a unicidade de nossos Zuzias a todas as situações. 

Shabat Shalom,

Rabino Dr. Ruben Sternschein