O florescer que vem da crise: na história judaica e no presente

Nesta semana começamos a ler o livro de Vaicrá/Levítico, que foca boa parte de sua atenção nos intrincados detalhes dos sacrifícios oferecidos como forma de culto religioso na época bíblica. Meu professor, o rabino Nehemia Polen, compara esses sacrifícios a vários tipos de presentes que são dados ao longo da nossa vida: há o anel que oferecemos àquela pessoa super especial; há as flores que oferecemos com alguma rotina para dizer que o amor continua vivo; há uma caixa de bombons com um cartão pedindo desculpas quando reconhecemos que fizemos algo errado ou que magoamos alguém que nos é importante; há o presente de aniversário, um ritual que repetimos todo ano na mesma época. Assim eram os sacrifícios: a forma do povo manter vivo e relevante o relacionamento com Deus.

No ano 70 EC, o Templo de Jerusalém foi destruído nas Guerras Judaico-Romanas. Foi um trauma profundo para todo o povo judeu, um momento no qual desapareceu o local que centralizava de forma física e espiritual o relacionamento com o Divino – além das mortes resultantes da guerra, estimadas em centenas de milhares de pessoas. O Judaísmo, no entanto, sobreviveu e se desenvolveu. As ruínas do Templo e o trauma resultante permitiram que novas ideias florescessem. O Judaísmo que praticamos hoje é resultado desse processo criativo que aconteceu após o ano 70, quando a manutenção do relacionamento com Deus não podia mais se dar através das práticas descritas em Vaicrá. De acordo com um midrash, Rabi Iochanan ben Zakai considerava que não devíamos sentir pesar pelo que tínhamos perdido pois o Judaísmo que havia nascido nesse processo era muito superior àquele que não tínhamos mais (Avot de-rabbi Natan 4:5).

Vivemos atualmente nosso próprio trauma. Fechados em nossas casas, preocupados com o grau de destruição de vidas, da economia, das estruturas com as quais estávamos acostumados até o momento. Forçados pela necessidade, temos a oportunidade de reavaliar nossa condutas, a forma como tratamos o planeta e uns aos outros; a forma como egoísmo e altruísmo se negam ou se completam; as redes de proteção que oferecemos aos segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade e como temos construído sistemas em que as vulnerabilidades se perpetuam sem solução. 

No rastro dessa pandemia, temos a oportunidade de permitir que nossa criatividade flua e construa estruturas sociais mais sustentáveis, mais justas, mais empáticas e mais produtivas. Estamos aprendendo novas formas de usar a tecnologia, de compartilhar nossos talentos e de desenvolver novos; de estarmos mais envolvidos na educação de nossos filhos, com o dia a dia dos nossos pais. Com o uso de ferramentas de reunião virtuais, as distâncias passaram a ser irrelevantes: assistimos cursos dados no outro canto do globo e rezamos com gente que nunca imaginamos encontrar. Como vamos garantir que, terminada a quarentena, esse avanços não sejam perdidos e que não retrocedamos para as práticas que já deram errado no passado?

No meio de toda dor, angústia e medo, temos motivos para ser otimistas com a forma como sairemos da hibernação propiciada por essa crise. Ao mesmo tempo, precisamos cuidar para que seus efeitos nefastos sejam minimizados, tanto no que se refere à dimensão médica e à propagação do vírus quanto no que tange aos aspectos econômicos e sociais. Esta é a hora de colocar em prática os valores sobre os quais queremos construir nossa nova realidade.

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman