Preferir a proximidade?

A famosa e repetida estória da pessoa que se perde na floresta e se atemoriza ao ver de longe uma figura monstruosa, guarda mais mensagens e desafios do que o que parece à primeira vista. Repassemos: uma pessoa se perde na floresta e se enche de medo ao divisar uma figura se movimentando. Em seguida, comprova que a figura se dirige a si e o medo aumenta, especialmente ao identificá-la como um monstro. A pessoa começa a caminhar para trás, até que dá de costas com uma árvore e entende que não poderá fugir. Fecha os olhos com pânico e, quando supõe que o monstro já está muito perto, se atreve a abri-los, talvez pela última vez, e descobre que o monstro é uma pessoa. Logo mais, quando fica bem perto, reconhece que se trata nada menos do que de seu próprio irmão. (Existe uma outra estória, às vezes unida a essa, na qual no final cada um mostra os caminhos já testados e resolvem buscar juntos uma nova saída). 

No caminho a concluir que de perto as pessoas se humanizam, que os monstros podem ser irmãos quando os conhecemos mais, perdemos um detalhe: conforme a figura se aproximava, o medo aumentava. A clareza de que se tratava de um monstro crescia com a proximidade. Ao menos por um tempo.

Acredito que não se trata de uma imprecisão ou de uma incongruência lógica. A estória poderia querer transmitir mais uma mensagem. Mais profunda e mais complexa do que a óbvia e bonita.

Também as pessoas próximas nos aparecem monstruosas às vezes. Mais ainda: justamente as pessoas que conhecemos mais de perto, aquelas que conhecemos mais, aquelas de quem conhecemos vícios e motivações não muito nobres, que as temos visto sem produção, sem tomar banho, com as quais passamos suficiente tempo para ver seus lados pobres ou simples, tem mais potencial para desgastar sua imagem dentro de nós. Pessoas que vemos de vez em quando, que ouvimos pouco, não têm tempo de errar e acabam deixando uma imagem melhor do que as mais próximas. Talvez errada. Talvez incompleta.

A parashá da semana é famosa por ser a que mais leis ou mishpatim inclui. Entre elas, a ideia de priorizar o cuidado com os mais próximos. Séculos mais tarde o Talmud baseou nela as a categorias de proximidade. Quem morar com você precede a quem não, quem for de teu povo, quem for de tua cidade vêm antes. Interessante que não fica determinado que acontece com um membro de tua família ou povo que mora em outra cidade, comparado com um vizinho que não fosse de sua família.

Alguns comentaristas dizem que se trata da priorização natural de qualquer pessoa. Outros sustentam o contrário, muitas vezes desatendemos os mais próximos por inúmeras razões: porque “já estão na mão”, porque os mais distantes são mais exigentes, porque é mais desafiador conquistar alguém novo, porque o desconhecido é mais atraente ou ameaçador, ou, como já dito acima, porque o distante “fica melhor na foto”. A Torá viria a reivindicar o cuidado com o mais próximo, ou talvez a busca por uma verdade mais profunda nos relacionamentos.

A distância pode encantar ou estranhar. A proximidade pode criar identificação ou desgastar e desprezar. As vezes vemos somente o lado rival e alheio. Por bem e por mal. Admiramos, invejamos e antagonizamos sem suficiente fundamento.

A parashá nos desafia a completar a imagem de todos. Próximos e distantes. Ao encontrarmos seus desejos, suas paixões, seus medos, suas as frustrações, seus sonhos, suas forças, suas fraquezas, conseguimos nos ver nelas e acessar algo mais de verdade. Própria e dos outros.  

Shabat Shalom,

Rabino Dr. Ruben Sternschein