Quem eu?

Passamos por toda a etapa das festas que começaram em Rosh Hashaná e finalizaram com a grande festa de Simchat Torá. Um período intenso, fizemos uma reflexão profunda de nossas ações, nos entregamos à fragilidade de Sucot e reiniciamos o ciclo da leitura da Torá. Um recomeço com alma renovada e novas possibilidades de nos reencontrarmos com o mesmo texto que vem sendo lido há séculos a fio.

A primeira parashá, Bereshit, tão conhecida pela história da criação do mundo já traz diversos desafios para o ser humano que será criado e a convivência com outros. Assim começamos.

Quando Deus criou o ser humano, deu-lhe a instrução de que poderia comer de qualquer árvore do Gan Eden, inclusive a da Vida, mas não a do Conhecimento do Bem e do Mal. É somente depois desta instrução que Chavá (Eva) é criada.

A serpente coloca Chavá a prova, já que ela não estava presente quando Deus fez a proibição, tinha ouvido de Adam. Afirmar que somente quem escuta ou vivencia é quem realmente sabe é falso. O acúmulo de informações e conhecimento que o ser humano veio fazendo ao longo dos milênios é o que permite qualquer tipo de sociedade avançar. Se cada um tivesse que inventar a roda do zero não teríamos toda a tecnologia que temos hoje.

O texto apresenta um dilema, Chavá tem a palavra de Adam contra a da serpente, a qual a Torá faz questão de enfatizar que era o animal mais astuto criado por Deus. A serpente tinha bons argumentos: conhecer o Bem e o Mal e viver para sempre (porque tinham livre acesso à árvore da Vida) seria “ser como” Deus.

O desafio humano começa realmente quando Deus percebe o que aconteceu e pede que Adam se explique. Ele é o interlocutor primário. O primeiro que ele faz é colocar a culpa em Chavá (e talvez também em Deus): “A mulher que me deste foi quem me deu de comer”.

Teria sido Adam obrigado a comer do fruto? Chavá lhe ofereceu, mas ele tinha todo o direito de negar e reafirmar a proibição divina. Teria sido o momento de reafirmar o pacto com Deus como o primeiro ser humano. Adam se assusta pela primeira vez e não sabe o que fazer despejando toda a culpa em Chavá. Quando ela é questionada coloca a culpa na serpente: “a serpente me enganou”.

Que engano foi esse? Chavá realmente não morreu quando comeu do fruto proibido, apesar de ter sido essa a ameaça divina. A serpente trouxe argumentos tão válidos como verdadeiros até aquele momento. Chavá foi convencida, não enganada.

Parece que Deus tem medo de desafiar a serpente, porque a ela nada pergunta. Talvez ela realmente conhecesse os medos divinos e deveria ser silenciada primeiro.

O primeiro casal ao se enfrentar com a primeira dificuldade não se apoia mutuamente, não busca uma saída para solucionar suas dificuldades. Ninguém assume sua culpa. A primeira reação é culpar outros.

Acabamos de atravessar as festas de assumir as culpas. Mas se isso é concentrado em apenas um momento do ano, as relações podem não sobreviver até os próximos Iamim Noraim. A primeira leitura do ano nos leva à complexidade das relações humanas, apresenta a realidade de que se não assumirmos nossas culpas poderemos perder todos os paraísos, por mais metafóricos que sejam.

Que possamos continuar a observar nossas relações, assumir nossas responsabilidades,  ajudar o outro quando vemos que está indo por outros caminhos e aceitar que erramos para assim nos desculpar. Só assim poderemos ter relações realmente saudáveis entre todos nós.

Rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik