Uma sinfonia para o ano novo!

Em uma conversa recente com o intelectual carioca Paulo Geiger que virou o terceiro episódio do podcast 5.8 [1], ele citou a frase “chadesh iameinu kekedem”, “renove os nossos dias como os outrora” [2] como evidência da constante e paradoxal busca judaica de transformação por meio  da tradição. Para ele (e eu concordo), o judaísmo conseguiu manter a si mesmo e seus valores relevantes ao longo dos séculos por ter tido a flexibilidade de se transformar continuamente.

Neste shabat temos uma leitura da Torá especial, por ser o primeiro dia de Sucot. Nela, Deus define alguns dos parâmetros básicos do calendário judaico: o shabat, Pessach, Shavuot, Rosh haShaná, Iom Kipur e Sucot [3]. Lendo esse texto em 5781, talvez não reconhecêssemos, pelas suas descrições, algumas das datas mencionadas: não se fala em entrega da Torá em Shavuot, da peregrinação pelo deserto em Sucot ou do começo do ano em Rosh haShaná. Todas essas, são interpretações rabínicas sobre o texto da Torá, evidência do processo que Paulo Geiger descreveu, de como mantivemos a relevância da tradição adaptando-a e atribuindo novos significados.

Como uma sinfonia bem composta, as festas judaicas dialogam entre si buscando harmonia e equilíbrio e suas mensagens têm se mantido incrivelmente atuais. O foco universal na liberdade do Pessach, por exemplo, é balanceado pela perspectiva particularmente judaica do pacto de Deus com nosso povo, simbolizado pela entrega da Torá que celebramos em Shavuot.

Nesta época do ano em que estamos, o foco na reflexão, na introspecção e na espiritualidade de Rosh haShaná e Iom Kipur levam a nosso crescimento pessoal mas poderiam nos cegar para a realidade do que acontece ao nosso redor, especialmente para os mais vulneráveis. Há um risco de, ao repetirmos o Unetanê Tokef e nos darmos conta da nossa própria fragilidade, desenvolvermos condutas que buscassem apenas à nossa própria salvação. Sucot dá resposta a esse risco e nos expõe às nossas fragilidades coletivas e do planeta, com foco em quem vive permanentemente em cabanas ou nas ruas.

Também as novas datas que os Rabinos incorporaram ao calendário judaico como parte de seu projeto de inovação por meio da tradição mantiveram sua relevância ao longo do tempo. Em Purim, entre outros assuntos, falamos de riscos da vida judaica na diáspora que tem sido especialmente verdadeiros nos últimos anos em várias partes do mundo: o risco de nos vermos sem poder algum e vulneráveis às autoridades do momento ou, de forma paradoxal e paralela, de sermos seduzidos pelo poder e abrirmos mão dos nossos valores. Em Chanucá, a festa em que buscamos trazer luz a um mundo cada vez mais tomado pela escuridão, questões parecidas se apresentam, dessa vez na terra de Israel: a possibilidade de respeitarmos as diferenças (e sermos respeitados) ao mesmo tempo em que dialogamos com outras culturas. A leitura rabínica de Tishá b’Av nos leva a considerar qual nosso papel para dar fim a uma cultura do ódio, no qual sermos indiferentes é sinônimo de conivência.

Dando ritmo a essa sinfonia, o Shabat marca, a cada semana, a possibilidade de apenas sermos. Com um longo respiro, buscamos nos centrar novamente, recarregando as baterias do corpo e as energias da alma. E cada maestro, cada solista, dão seus toques especiais à música, adequando-a aos tempos e à pluralidade da vida judaica.

Nesse ritmo, o calendário judaico tem o potencial de dar textura e significado ao nosso tempo — mas depende de cada um de nós permitirmos que essa sinfonia faça parte da trilha sonora das nossas vidas. Quem sabe, 5781 é o ano em que você vai tentar fazer isso?

Shabat Shalom e Chag Sameach!

Rabino Rogerio Cukierman

 

[1] https://5ponto8.fireside.fm/3

[2] Lamentações 5:21

[3] Lev. 23