Reconciliando religião e ciência | Parashat Bereshit
Estamos acostumados a compreender a ciência e a religião como campos opostos e mutuamente excludentes. A ciência trabalha com fatos e evidências, enquanto que a religião atua no campo da fé. Se na ciência é “ver para crer”, na religião é “crer para ver”. Para a ciência, aquilo que não se pode provar não existe, e para a religião, a fé é a resposta definitiva para toda e qualquer questão.
Com a chegada do Iluminismo no início do século 19, o obscurantismo religioso deu lugar ao esclarecimento científico. Estava estabelecida uma relação de antagonismo entre essas duas áreas do saber humano.
Em seu livro Homo Sapiens, Yuval Noah Harari nos ajuda a refletir sobre a diferença entre ciência e religião. Segundo o autor israelense, a religião se baseia na ideia de que tudo sabemos. Assim, se pretendo ter determinado conhecimento sobre algum assunto, basta verificar a resposta nos livros sagrados ou questionar os sacerdotes. Se a religião não responde determinada pergunta, é sinal de que aquele assunto é irrelevante. O exemplo que o livro traz é a pergunta sobre como aranhas fazem suas teias. Como os sacerdotes e as bíblias não possuem resposta para essa pergunta, compreendemos que a pergunta em si não deveria ter qualquer importância.
Já para a ciência, o pressuposto é outro. Aqui, partimos do princípio de que nada sabemos. A ignorância é o que move a investigação científica. É justamente porque nada sabemos que tudo se transforma em objeto potencial de investigação. Quando finalmente encontramos uma resposta, esta será sempre provisória. As verdades científicas são chamadas de hipóteses porque estão suscetíveis a serem substituídas por novas hipóteses a qualquer momento. Assim, planeta deixa de ser planeta e o índice de colesterol recomendado é revisado de tempos em tempos.
Acredito que a tradição judaica tem o potencial de desafiar essa lógica, segundo a qual o que é da fé, pertence somente à fé, e o que é de interesse da ciência, apenas ciência é. Isso porque o judaísmo não se baseia na ideia de verdades absolutas. Muito pelo contrário. A ideia de verdades absolutas únicas nunca foi originalmente judaica. O judaísmo clássico convivia muito bem com a noção de uma fé que tem espaço para diferentes pontos de vista, por vezes contraditórios. Max Kadushin, autor judeu do século 20, criou o termo “indeterminação da crença”. Para Kadushin, os sábios do Talmud estavam equipados para trabalharem com a noção de muitas verdades complementares sem a necessidade de que uma se sobrepusesse sobre a outra.
Assim, quero sustentar que o advento das correntes judaicas liberais no século 19, momento de grande rivalidade entre ciência e religião, resgatou a noção judaica de uma religião capaz de conviver em paz com a dúvida.
Acredito que essa característica judaica moderna merece ser valorizada porque a alternativa tem o potencial de nos conduzir ao fanatismo. Quando acredito haver apenas uma resposta correta para cada pergunta de fé, me aproximo de uma postura intransigente, preconceituosa e excludente. No momento em que admito existir um caminho correto, passo a deslegitimar toda decisão diferente da minha.
Essa visão judaica pluralista possibilita uma reconciliação entre a ciência e a religião. Um exercício inclusivo do judaísmo faz com que as verdades religiosas sejam plurais e provisórias e nos aproxima da postura científica.
Qual seria a função da religião se ela não responde de maneira definitiva a nossas perguntas, se seu papel seria justamente nos ajudar a conviver em paz com aquilo que não compreendemos? A religião nos conforta diante da decepção do não saber. A religião traz inspiração e conforto para vivermos em paz com aquilo que nunca poderemos explicar.
Finalmente, gostaria de defender a ideia de que também a ciência tem algo a aprender com a religião. Um pouco de fé seria importante para o ambiente acadêmico também.
As universidades não estão isentas da possibilidade do exercício fanático da ciência. O fanatismo não é um fenômeno exclusivo das religiões. Aquele que apenas acredita naquilo que possa ser comprovado, terá dificuldade de viver em sociedade. Muitas vezes precisamos seguir em frente mesmo sem conhecer todas as respostas para as perguntas relevantes. É preciso acreditar que, de alguma maneira, as coisas vão se organizar e que existem sempre elementos que estão além de nossa compreensão.
O pensador moderno Avraham Iehoshua Heschel dizia que muitas vezes é preciso fazer mais do que se compreende para se compreender mais do que se faz. Existe um entendimento que nasce da prática, do convívio. Não podemos aguardar o momento de saber tudo para caminhar em determinada direção. É preciso ter fé nos outro e em nós mesmos.
Estamos no Shabat Bereshit. A leitura da versão bíblica da criação do mundo nos arremessa na disputa entre ciência e religião. Enquanto celebramos a chegada de 5781, cientistas dizem que os primeiros humanos já estavam por aqui há 200 mil anos.
O primeiro Shabat depois de Simchát Torá nos convida a um exame profundo de nossa capacidade de confrontar uma postura fanática frente a vida. Quero sugerir que a reconciliação entre religião e ciência é possível. Quando a religião admite não saber tudo, ela se aproxima da ciência. No momento em que a ciência incorpora alguma medida de fé em sua metodologia, fica mais próxima da religião.
E quando isso acontece a sociedade sai ganhando, porque enquanto a ciência se preocupa com o “como”, a religião responde “para quê”. E a união dessas respostas, sempre provisórias, enriquece nossa busca.
Shabat Shalom!
Rabino Michel Schlesinger