A busca pelas nossas paixões e seus limites

A parashá desta semana inclui uma passagem que muitos de nós sabemos de cor: o terceiro parágrafo do Sh’má, lido em voz alta na sinagoga e que tem instruções sobre o uso de tsitsit  nos cantos das nossas vestes.

 

Muitas mitsvot não têm seu motivo explicitado na Torá, mas aqui a razão para o uso do tsitsit fica clara: “(…) para que vocês os vejam e se lembrem de todas as mitsvot de Adonai e as cumpram e para que vocês não andem sem destino, [perseguindo as distrações de] seus corações e de seus olhos, em cuja busca vocês se perdem.” (Num. 15:39)

 

Portanto, o tsitsit funciona como o proverbial laço no dedo, uma ferramenta mnemônica para que não nos esqueçamos das mitsvot e para que possamos cumpri-las em todos os momentos. A interpretação da segunda parte do verso, no entanto, pode representar um desafio. O rabino Abraham Joshua Heschel (1907-1972) falava da necessidade de despertarmos a capacidade de sermos “radicalmente maravilhados” (radical amazement) em nossas vivências cotidianas, com um mundo em que Deus renova perpetuamente Seu processo de Criação. Ao mesmo tempo, identificar e buscar as paixões dos nossos corações são partes importantes do auto-conhecimento, da busca pelas características que nos tornam fundamentalmente quem realmente somos, do processo de aperfeiçoamento que nos traz para mais próximo do Divino.

 

Como conciliar, então, a necessidade de termos o olhar pronto para sermos radicalmente maravilhados e a capacidade de identificarmos e perseguirmos nossas mais profundas paixões ao mesmo tempo em que garantimos que não somos seduzidos pelas distrações dos olhos e dos corações, em cuja busca nos perdemos?

 

Em resposta a esta pergunta, Maimônides (1135-1204) estabelece condições bastante rígidas e que parecem cercear a liberdade de pensamento: “se toda pessoa puder seguir os impulsos de seu coração, ela irá – com sua visão limitada – levar à destruição do mundo. Como? Em um momento ela irá considerar a idolatria e em outro, questionar a unidade do Criador, questionando Sua existência, o que há acima e abaixo e debatendo se a profecia é real ou não.” Sforno (1475-1550), por outro lado, tem uma visão que dá mais espaço para o livre-pensar. Para ele, somente devemos deixar de perseguir nossas paixões quando elas nos levam a um caminho de destruição em busca de honra e riquezas.

 

A abordagem limitante de Maimônides está em direta contradição com as perspectivas judaicas contemporâneas, nas quais o questionamento é valorizado (e visto como exercício espiritual) e para as quais o encontro do Judaísmo com a modernidade, especialmente  com as ciências, pode ser muito positivo. O equilíbrio que buscamos permanentemente é o de identificar e buscar nossas paixões sem nos tornarmos escravos delas, reconhecendo os limites do respeito e da ética na condução dos nossos projetos. Assim como identificou Sforno, é quando nossas paixões são motivadas exclusivamente pelo desejo de riqueza e poder que elas se tornam distrações e que devemos tomar cuidado para não nos perdermos em sua busca.

 

Que assim como o tsitsit, que a leitura desta passagem neste Shabat nos lembre das pessoas que desejamos ser, do comportamento que desejamos ter em nossas interações com o mundo, de nossas paixões e dos compromissos assumidos para que nossas ações sejam baseadas na ética e no respeito. 

 

Shabat shalom,

 

Rabino Rogério Cukierman