O filósofo britânico Alain de Botton, em uma apresentação chamada “Ateísmo 2.0”, fala de quais são os valores e práticas que o mundo secular deveria absorver das religiões. Um dos temas que ele apresenta é a importância de nos “encontrarmos” com ideias e valores que enriqueçam nossas vidas de forma organizada e constante.

O que as religiões fazem é “… organizar o tempo. Todas as grandes religiões nos dão calendários. O que é um calendário? Um calendário é uma forma de assegurar que durante o ano você irá esbarrar com certas ideias muito importantes […] Nós não pensamos desta maneira. No mundo secular pensamos, ‘Se uma ideia é importante, eu vou cruzar com ela. Vou simplesmente me deparar com ela.’ Tolice, diz a visão religiosa mundial. A visão religiosa diz que precisamos de calendários, de tempo estruturado, nós precisamos sincronizar os encontros. Isto também se revela na forma na qual as religiões estabelecem rituais em torno dos sentimentos importantes.” [01]

No judaísmo liberal, são as formas da vida secular que, em geral, regem nossa vida. Nossa experiência judaica se limita ao espaço da sinagoga, às festividades centrais de nosso calendário e às celebrações do ciclo da vida. Acaba sendo difícil, na vida cotidiana, gerar “esses encontros” com os valores de nossa tradição.

Através das mitzvot, nossa tradição nos coloca de frente com valores, ideias e oportunidades de viver com uma consciência maior de cada momento. A prática dos rituais e dos preceitos no judaísmo liberal é uma proposta, uma escolha mais do que uma obrigação. Temos que conhecer e escolher aquelas que dão sentido e valor à nossa vida hoje. Os rituais transformam valores em ações.

Por exemplo, como podemos ser mais agradecidos? Se esse for um valor que queremos trazer a nossa vida, o que podemos fazer? Podemos abençoar. São tantas as bênçãos diárias que nos passam batido, sem nos darmos conta de tudo que temos e tudo que somos.

A partir de um versículo da parashá desta semana, os rabinos do Talmud aprendem que devemos recitar cem bênçãos por dia: “ensina em uma baraita que o rabino Meir disse: uma pessoa está obrigada a recitar cem bênçãos todos os dias, como diz o versículo: ‘e agora, Israel, o que [em hebraico, ma] exige o Senhor teu Deus de ti?’ (Deut. 10:12). O rabino Meir interpreta o versículo como se dissesse cem [em hebraico, me’a], e não o quê [ma]” (Menachot 43b)

Também nesta parashá encontramos a obrigação de agradecer pela comida: “e comerás, te fartarás e louvarás ao Eterno, teu Deus, pela boa terra que te deu”. (Deut. 8:10)

Será que somos capazes de aceitar esse desafio? Seremos capazes de nos comprometermos a abençoar talvez não cem, mas dez, cinco, ou mesmo uma vez ao dia? Abençoar o fato de estarmos vivos ao amanhecer, agradecer pelas refeições do dia, abençoar à noite o dia que passou. Será que abençoar e sermos agradecidos terá um efeito em como nos sentimos, em como atuamos? A experiência será diferente para cada um de nós, o importante é tentarmos e sermos constantes . Proponho que escolhamos uma prática diária que torne presente e tangível algum valor, e vejamos se nos ajuda a ver o mundo e a nós mesmos com outros olhos.

 

Shabat Shalom,

Rabina Tati Schagas

[01] https://www.ted.com/talks/alain_de_botton_atheism_2_0/transcript%23t-17002