Daniel Boyarin, professor de Cultura Tamúdica na Universidade de Berkeley, fala bastante da intertextualidade dentro do Tanach, termo por meio do qual aponta para três características do texto bíblico: (1) há citações frequentes, explícitas ou não, de passagens escritas em períodos anteriores, (2) existe a possibilidade de enxergarmos o texto em si como uma situação em que acontece o diálogo entre passagens distintas, e (3) códigos culturais (conscientes ou não) podem encorajar ou reprimir a produção de novos textos. [1]

Em palavras mais simples, passagens do Tanach podem ser vistas em diálogo com outras passagens e devemos ter isso em consideração quando as consideramos. Nas parashiot das últimas semanas, vimos uma ênfase na rejeição de casamentos entre homens hebreus e mulheres canaanitas. Foi assim que Avraham pediu a seu servo que fosse buscar uma esposa para Itschác na terra de seus antepassados, e que Rivcá e Itschác pediram a Iaacóv que fosse à casa de seu tio buscar uma esposa. 

Na parashá desta semana, por outro lado, temos o primeiro caso de um hebreu se casando com uma mulher de família local: Iehudá se casa com a filha de Shuá, sem que o nome dela seja mencionado na Torá. Por um caminho tortuoso (que vale muito a leitura, mas que não acrescentaria nada aqui), Iehudá acaba também tendo filhos gêmeos com Tamar: Peretz e Zarach. Além de ter dado nome ao povo judeu, Iehudá, através de Peretz, se tornou ancestral do Rei David, o rei paradigmático das histórias do Tanach.

Seguindo as orientações do professor Boyarin, podemos ler estas passagens em diálogo umas com as outras — algumas argumentando fortemente que o casamento com não judeus levaria à extinção do judaísmo e outros dizendo que, pelo contrário, é até bom incorporar pessoas e ideias novas à nossa tradição. Há algumas décadas, em muitas famílias quando um filho ou uma filha tinham um relacionamento amoroso fora da comunidade judaica, era motivo de grande consternação (como foi para Rivcá a mera possibilidade de que Iaacóv se casasse com uma mulher de Cnaán [2]), com medo de que aquele ramo familiar se afastasse permanentemente da tradição e da cultura judaicas. Hoje, no entanto, a realidade é, em muitos casos, bastante diferente. Encontro muitas famílias nas quais a parte não judia é até mais interessada na educação judaica dos filhos do que os parceiros judeus; em outros casos, mesmo que o pai e a mãe sejam os dois judeus, não expressam nenhuma intenção de ir além do mero superficial na vivência judaica da família. A vitalidade da vida judaica das famílias não é necessariamente determinada pela percentagem judaica de cada casal — mas pela relevância que cada um encontra no judaísmo que conhece.

Será que conseguiríamos conceber uma conversa imaginária entre Rivcá e seu neto, Iehudá, sobre esses temas? Ela falaria de suas angústias e medos, ele falaria da necessidade de ter liberdade para encontrar quem realmente ama. Ambos teriam razão, ambos falariam das suas verdades e, quem sabe, depois de chorarem um pouco, conseguiriam vislumbrar um futuro de criatividade judaica, em diálogo com a realidade onde viviam, no qual famílias se constituem por vários motivos e escolhem rumos que não são predestinados. Essa conversa pode nos ajudar também a pensar como nos relacionamos com as sociedades primordialmente não-judaicas nas quais vivemos.

Neste domingo acenderemos a primeira vela de Chanucá, uma festa que, desde a sua narrativa de origem, está associada ao diálogo com outras culturas (ou à falta dele): que costumes incorporamos, que roupagem judaica lhes damos, que histórias contamos a seu respeito. Que na sociedade multicultural em que vivemos, consigamos encontrar caminhos para nos relacionarmos com gente de todas as culturas e construir cada vez mais pontes, ao mesmo tempo em que nos preparamos para um futuro judaico intenso, vibrante, criativo e relevante.

 

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] https://doi.org/10.2307/1455327 

[2] Gen. 27:46