A partir da Hascalá, o Iluminismo Judaico, no final do século XVIII, estudiosos do judaísmo, em particular no mundo judaico liberal, passaram a buscar a racionalidade nas práticas religiosas e se afastar das explicações místicas, considerando-as supersticiosas ou baseadas em crendices. Este fenômeno atingiu seu ápice na metade do século passado, quando até mesmo o estudo de fontes místicas nos seminários rabínicos liberais não era visto com bons olhos. O rabino Abraham Joshua Heschel, cujos livros continuam nos inspirando e orientando décadas depois de sua morte, era um dos que insistia em ensinar estes textos apesar da resistência e dos olhares feios. Nos anos em que ele ensinou no JTS, a escola rabínica vinculada ao movimento Conservador em Nova York, ele tinha um pequeno grupo de alunos com quem estudava os textos chassídicos, cheios de mitologias e de perspectivas sobre as dinâmicas Divinas. Antes vistos como “estranhos”, estes discípulos de Heschel acabaram se tornando os grandes teólogos da geração seguinte. O rabino Art Green, com quem eu estudei, era um destes desbravadores que ousaram desafiar a perspectiva do que era o “judaísmo apropriado.” Além de Heschel, Martin Buber (que publicou contos sobre o mundo chassídico, cheios de perspectivas místicas) e Gershom Scholem (que estudou academicamente o misticismo judaico) ajudaram a resgatar perspectivas menos racionais às práticas judaicas.
A parashá desta semana, Chucat-Balac, tem uma destas passagens que será bem difícil explicar para quem busca explicação racional para tudo que está na Torá. O texto nos diz que o contato com um cadáver torna uma pessoa ritualmente impura e que a forma de recuperar a santidade ritual é através das cinzas de uma vaca vermelha sem qualquer defeito que havia sido abatida e queimada de acordo com o processo detalhado no texto.
Muito antes da Hascalá, este ritual já atraía a curiosidade dos comentaristas. Rabi Iochanan ben Zacai, que liderava o Sanherdin na época da destruição do Segundo Templo, disse aos seus alunos que não havia qualquer explicação racional para ele, uma explicação (ou falta dela) compartilhada por vários outros sábios do Talmud e do Midrash. De acordo com outros comentaristas, entre eles Nachmanides e Nechama Leibowitz, o ritual pode não ter explicação racional, mas sua utilidade está em deixar claro para os judeus que a proximidade com cadáveres não é bem vista, em particular tendo em vista práticas de outras religiões nas quais estes corpos são adorados.
Há momentos em que o racionalismo judaico nos serve muito bem e outros nos quais precisamos reconhecer que não temos controle sobre tudo e que alguns assuntos ficam melhor se não forem explicados completamente. Práticas relacionadas à morte, em particular, exercem um fascínio sobre nós. Mesmo pessoas que têm pouquíssima afinidade com a religião buscam práticas religiosas quando falece alguém muito próximo e têm dúvidas sobre o que acontece quando alguém morre. Quando estas perguntas são feitas a mim, costumo dizer que há inúmeras respostas judaicas diferentes sobre o que acontece depois da morte e que o que cada um de nós acredita é resultado tanto do que o judaísmo tem a ensinar quanto da fé. Não devemos ter vergonha em reconhecer que algumas crenças não tem base racional e que são fundamentadas unicamente na fé.
Que consigamos encontrar o equilíbrio e construir juntos perspectivas judaicas que permitam que mantenhamos nosso intelecto ativo quando tratamos de temas religiosos ao mesmo tempo em que deixa espaço para a fé em nossa vida interior.
Shabat Shalom!
Rabino Rogério Cukierman