Micah Goodman mostra em diversos contextos a relação entre libertar e libertar-se. Libertar para poder se libertar. Não escravizar para não se escravizar.

Especialmente, na relação entre o verbo lanuach (descansar) e lehaniach (deixar, soltar, permitir) que em habraico surgem da mesma raiz. Como se para alcançar serenidade é preciso o desapego.

Antes, Harari mostrou que, quando descobrimos a agricultura, possuímos a terra, mas fomos possuídos por ela também. Tornamo-nos donos e escravos da terra ao mesmo tempo. Passando do nomadismo ao sedentarismo, deixamos de depender do que encontraríamos casualmente em horas de busca por comida, mas passamos a trabalhar dia e noite, verão e inverno, para garantir que nossa terra produza exatamente o que precisamos no tempo e na quantidade que ambicionavamos.

Possuímos nossas possessões e posições ou elas que nos dominam e determinam? 

O final do terceiro livro da Torá, Levítico, se compõe pelas parashiot Behar e Bechucotai que se leem nestes dias. A primeira, da semana passada, nos lembra as leis do ano sabático e do jubileu, segundo as quais a cada sete anos e a cada cinquenta anos, as terras eram liberadas de nosso usufruto e as pessoas de suas dívidas. Era declarado com o som do shofar o ano da libertação: todo mundo voltava a casa e a si próprio, as terras não podiam ser trabalhadas e, assim, descansavam do humano, e o humano descansava do trabalho da terra.

Credores renunciavam a parte de seus bens apagando dívidas e libertando devedores, mas ganhando o tempo e o espaço que deixavam os que voltavam a suas famílias a suas terras, a seus tempos e a suas autodeterminações.

Não só somos prendidos pelos que devemos, mas também pelo que cobramos e reclamamos.

Quando não perdoamos, ficamos tão presos aos nossos agresores e ofensores como tentamos prender eles. E talvez mais.

Os estoicos diziam que perdoar era mais para quem perdoa do que para quem é perdoado.

A parashá continua lembrando que não podemos realmente vender nem comprar terra, pois somos apenas “turistas”, passageiros na terra da Divindade.

No final, a primeira parashá estabelece que ninguém pode escravizar ninguém pois todos somos somente servos da vida e do Divino. Ou seja: a objetivação das terras, dos bens e das pessoas e a pretensão de possuí-las são uma falácia que acaba escravizando todas as partes.

Segundo a segunda parashá, Bechucotai, que lemos esta semana, tudo que acontece é consequência de nossas escolhas. Direta ou indiretamente. 

Ela começa com uma expressão emblemática e única em toda a Bíblia: “e os conduzirei komemiut”. Esta palavra não existe em nenhuma outra parte e foi adotada pela liturgia da benção prévia ao Shemá Israel e pela Declaração da independência do Estado de Israel. Compõe-se do radical kmm ou kvm que serve para formar as palavras levantar, erguer, revoltar, sustentar, existir e suas formas reflexivas (levantar-se, revoltar-se, etc.)

Que possamos nos revoltar quando necessário, diante de tudo o que escravizamos e do que nos escraviza pelo apego excessivo. 

Que aceitemos a liberdade leve que nos brinda a verdade de não possuirmos e apenas sermos.

Que assim, consigamos levantar, erguer, sustentar e promover a existência de tudo, com a dignidade da liberdade.

 

Shabat shalom

Rabino Dr. Ruben Stersnchein