Aquilo que nos torna humanos é nossa capacidade de ter medo. O medo nos protege, faz com que pensemos duas vezes antes de cometer um erro. Na medida certa, o medo é um sentimento saudável que permite que conheçamos nossos limites e operemos dentro deles. O medo da morte é o medo por excelência e aquilo que une todos nós.
Para o pai da psicanálise, como nunca tivemos a experiência da morte e, portanto, ela não existe em nosso inconsciente, o medo da morte é o reflexo de outros medos. Medo do abandono, da castração, dos conflitos não resolvidos, do sentimento de culpa podem, para Freud, se manifestar como medo da morte.
O medo dos medos pode se apresentar de diferentes modos ao longo de nossas vidas. Ele aparece na forma de receio de fracassar economicamente, medo de ficar sozinho, medo de sofrer, medo da velhice, da paternidade, da rejeição, da doença. Neste ano, a pandemia fez com que nós enfrentássemos medos muitos próximos e reais. Quem é saudável tem medo, e transforma esse pavor em cautela.
Em Shoftim, a parashá desta semana, Moisés prepara o povo para a guerra que os aguarda do outro lado do Jordão dizendo: “al tirau”, “não temam”, ou “não tenham medo”. Seria essa uma recomendação razoável, pedir para que o povo não tivesse medo diante da guerra?
A mesma recomendação aparece na Torá em diversas outras oportunidades. Essa recomendação de não temer está associada a momentos de transição pessoal das personagens bíblicas, nos indica a rabina Yael Splansky. Quando Avraham parte para um território desconhecido, é dito “al tirá”, “não tenha medo”. Quando Hagar e Ishmael passam sede no deserto, “al tirau”, “não temam”. Quando Itzchák se distancia da segurança de sua família para uma nova etapa da vida, “al tirá”. Quando o Iaakóv idoso se prepara para uma jornada ao Egito na direção do reencontro com o filho que ele acreditou por vinte anos que estava morto, “al tirá”. Ruth, David, Daniel, todos eles, em momentos de transição ouviram a mesma mensagem: “não tenha medo”.
Como compreender essa mensagem? Como interpretar essa exigência desumana para que essas personagens tão humanas não tivessem medo em momentos tão aterradores?
Gostaria de sugerir que a mensagem que existe aqui é profunda e serve para cada um de nós. Ao recomendar que não temessem, Deus estava convidando cada uma dessas mulheres e homens a reconhecerem seus medos e agirem apesar deles.
Quem não reconhece seus medos não tem a menor possibilidade de enfrentá-los. Apenas as pessoas que podem olhar de frente para seus fantasmas ganham a capacidade de vencê-los. “Al tirau” é um importantíssimo chamado para que tenhamos a coragem de reconhecer nossos medos, para que forjemos as ferramentas necessárias para superá-los.
Existe um medo estimulado pela tradição que é “irát shamaim”, “o medo do céu”, ou o “medo de Deus”. Esse medo, que pode também ser traduzido como reverência ou respeito a Deus, pode ser a inspiração para reconhecermos nossos próprios medos e seguirmos em frente apesar deles. Deus, nesse contexto, é a força que nos permite viver apesar de nossos medos e, talvez, por causa deles. Quem sabe não é esse o propósito de toda a religião e a noção de Deus?! Nas palavras do rabino Joseph Soloveitchik: “rezamos para que este grande respeito a Deus nos livre de todos os menores medos que nos espreitam por toda a parte, ferindo e amargurando nossas vidas”.
Por vezes, verifico que existe um medo ainda maior que o medo da morte, que é o medo de nunca ter vivido. Por isso, uma vida de propósito é o maior antídoto contra o risco de uma existência sem significado. Nas palavras de Millôr Fernandes: “quem mata o tempo não é um assassino, é um suicida”.
Antes de sair da sinagoga, no finalzinho do serviço religioso, vamos dizer na oração Adon Olam: “Adonai li velo irá”, “Deus está comigo e, portanto, não temerei”. Não é por acaso que no momento em que abandonamos a segurança das sinagogas, o conforto da tefilá e retornamos a nossas rotinas, reconhecemos nossos medos. Recomendo que interpretemos assim as palavras que o Adon Olam emprestou do Livro de Salmos: “Adonai li velô irá”, “que Deus me dê a coragem necessária para olhar de frente para meus medos e, apesar deles, e talvez até por causa deles, seguir em frente com coragem”.
Shabat Shalom,
Rabino Michel Schlesinger