Não sei se é só comigo, mas músicas e poemas têm o poder de me transportar no tempo e me fazer sentir emoções de outras épocas. Algumas canções do começo dos anos 80, por exemplo, me transportam rapidamente para o banco de trás do carro dos meus pais, no começo da adolescência, com aquele misto de sentimentos que caracterizam a idade. Choref 73 (Inverno de 73) traz de volta as lágrimas que chorei no final dos anos 90, quando eu morava em Israel e o país buscava se recuperar do trauma do assassinato de Itschak Rabin z”l. Há músicas que instigam sentimentos de revolta, animação e ativismo político. Há músicas que despertam nosso romantismo, e outras que nos ajudam a remendar o coração partido.

Há momentos em que buscamos na música a espiritualidade do agora, o que algumas vezes se chama de “mindfulness”, a capacidade de estarmos presentes no momento, sem nos preocuparmos com a próxima reunião ou com os toques insistentes do celular avisando novas mensagens que não param de chegar. A mim, ajudam nesse momento melodias rítmicas e repetitivas, quase mantras, repetidas inúmeras vezes. Essas músicas parecem ter a chave para destravar partes da espiritualidade que permanecem inacessíveis a maior parte do tempo.

A tradição judaica também tem uma relação forte com a musicalidade e com a poesia. Para algumas pessoas, mudar uma melodia sinagogal é quase cometer uma heresia, um desrespeito à prática comunitária. Para eles, há um conforto espiritual que vem da rotina, do fato de estarmos acostumados às mesmas rezas, aos mesmos textos e às mesmas melodias. Para outros, a mudança constante é necessária para que a espiritualidade não se torne mecânica, para que valorizemos a experiência daquele momento e possamos nos libertar de ciclos passados.

Em Rosh HaShaná e em Iom Kipur usamos a liturgia — texto e música — para nos transportarmos no tempo, para outras comemorações das mesmas festas, nos braços dos nossos pais e avós, com outros rabinos e outros chazanim, ao mesmo tempo em que construímos nossas experiência do agora, com nossos pais e nossos filhos, nossos avós e nossos netos. 

Nas Grandes Festas também usamos a reza para transportar Deus, no tempo e no espaço, para um dos momentos de maior intimidade de toda a Torá, quando Deus instruiu Moshé a Lhe cantar os Treze Atributos da Compaixão Divina [1]. É uma tentativa de levar Deus a recordar-se daquele momento de intimidade e exercer Sua compaixão também com relação aos nossos atos. Na parashá desta semana, por outro lado, Deus instrui Moshé a anotar um poema e ensiná-lo aos israelitas para que sirva de testemunha contra o povo de Israel [2]. Em uma mesma semana, músicas nos ajudam a despertar a compaixão Divina e a lidar com a Sua ira. 

Esse é o poder da música e da poesia: despertar nossos sentimentos e, por meio deles, afiar nossa razão. Perceber o subtexto das entrelinhas, manifestar sentimentos que as palavras em prosa não conseguem. Que música, você acha, marcará este 5782 para você? 

 

Shabat Shalom e Shaná Tová!

Rabino Rogério Cukierman

[1] Ex. 34:6-7a

[2] Deut. 31:19