O poder das palavras
Quando pensamos nas oferendas que aconteciam nos Templos de Jerusalém, o estranhamento é inevitável. É difícil entender como pessoas como nós se sentiam à vontade com um ritual que consistia no abate de animais para se aproximar de Deus.
A explicação antropológica indica que essa era a forma de culto conhecida na época, e os judeus reproduziram aquilo que acontecia com os outros povos. Aliás, alguns acreditam que a oferta de animais é uma evolução dos sacrifícios humanos que existiam em algumas tradições religiosas antigas.
Tentarei propor algo diferente.
Quero sustentar que o sacrifício de animais foi uma involução da espiritualidade judaica. Acredito que a mensagem dos primeiros capítulos da Torá foi mal compreendida e retomada somente em Devarím, no final do livro.
Quando Deus criou o mundo, o fez por meio das palavras. “Que haja luz”, e houve luz. A mensagem de um mundo criado por meio do discurso é a de que as palavras são suficientes para transformar qualquer realidade que se pretenda. A ideia de que a ferramenta principal do criador do mundo não foi um objeto físico, mas sua oratória, nos deveria ensinar que as palavras bastam para a geração de tudo.
Desde muito cedo, ainda na época da Torá, os homens pareceram desconfiar de sua capacidade de resolver todas as questões pelo discurso e desenvolveram um ritual dos sacrifícios. Assim, as oferendas seriam uma denúncia da desconfiança do homem na sua possibilidade de falar e resolver suas questões através do discurso.
No final da Torá, em Devarím, que significa “palavras”, a mensagem inicial parece ser retomada. O último livro da Torá, que começa a ser lido nesta semana, é o início de um grande discurso de Moisés que dura todo o último livro da Torá.
Em seu recente livro, “Os Judeus e As Palavras”, o escritor israelense Amós Óz desenvolve um ensaio sobre a relação íntima que nosso povo desenvolveu com as letras.
Estamos nos aproximando de Tishá BeAv. O 9 de Av lembra de maneira nostálgica os sacrifícios que eram realizados nos dois Templos de Jerusalém. Quando lamentamos a destruição, choramos também pela cessação dos rituais de oferenda e rezamos pelo seu retorno. O Mashiach vai nascer num Tishá BeAv, acredita nossa tradição.
No entanto, esta mensagem entra em choque com a noção bíblica, ou pelo menos do início e final da Torá, de que não precisamos de rituais de sangue para vivermos mais próximos de Deus, por consequência, mais próximos uns dos outros.
A única maneira de conciliar essas duas visões é permitindo que o Tishá BeAv seja um dia de lembrança, mas não um dia de nostalgia. A recordação do que foi deveria, ao meu ver, ser dissociada de um sentimento de apego.
Que tenhamos a maturidade necessária para retomar a visão, proposta pela Torá em seu início e seu final, de uma sociedade em que todas as suas questões sejam resolvidas pela capacidade humana de dialogar, e que o ritual espelhe essa decisão.
Shabat Shalom
Rabino Michel Schlesinger