Toda visita à sinagoga aos sábados e festas presencia uma cerimônia bonita e ao mesmo tempo estranha: os rolos da Torá são levados a passear entre as pessoas antes de serem lidos. Todos os presentes se viram em direção à Torá, acompanhando com seus corpos o passeio. Alguns, inclusive, beijam os rolos.
Será que o ritual inclui um momento pagão de adoração do pergaminho?
Nada mais alheio ao judaísmo que adorar objetos.
A viagem da Torá na sinagoga origina-se na parashá da semana. Nela, um parágrafo de duas linhas descreve que as tábuas viajavam numa arca durante a travessia do povo pelo deserto. Esse parágrafo é precedido e sucedido por espaços brancos que incluem a letra “nun” (“נ”) solta e invertida. Nada disso acontece em nenhum outro local do rolo da Torá.
O Talmud sugere, entre outras, a seguinte explicação: esse parágrafo não está no lugar certo da Torá, pois não tem espaço fixo no pergaminho. As duas linhas que contam sobre a viagem da Torá precisam viajar dentro da Torá. As letras “nun” indicam a palavra nossea, ou seja, “viaja”!
Tão importante é a viagem da Torá que a liturgia resolveu reproduzi-la e mostrá-la toda vez que for exposta fisicamente e ouvida literalmente.
Diríamos que a Torá toda, assim como o parágrafo, não tem espaço fixo e quer (ou deve) viajar. Porque, desse modo, indicar-se-ia sua vitalidade, sua relevância constante. A palavra escrita poderia morrer no pergaminho. Já a palavra dita, se passada de boca em boca através das gerações, viveria. Embora corra o risco de mudar, de ser ouvida de modos diferentes em contextos diferentes, talvez nesse processo se encontraria a chave de sua sobrevivência.
O Talmud estabeleceu também o princípio de que as palavras ditas verbalmente não podem ser escritas.
Ao mestre chassídico, rabino Nachman de Breslau, atribuem um livro queimado por ele mesmo com o intuito de não ser estagnado na escrita.
A própria Torá diz que deve ser cumprida segundo o que dela for ensinado e interpretado através do tempo pelas autoridades intelectuais.
O Povo do Livro parece ser contrário ao livro. A Torá parece pregar a não escrita de si mesma. O judaísmo prefere se perpetuar no dinamismo e não na morte da literalidade. Um midrash propõe, mediante a flexibilidade da ausência de vogais do alfabeto hebraico, que a palavra gravada nas tábuas, na verdade, foi libertada nelas (“libertada” e “gravada” se escrevem igual).
A Torá pode estar escrita mas nunca deve ser limitada à sua literalidade. Seu conteúdo vai muito além das letras e do pergaminho. O passeio do rolo na sinagoga expressa justamente o contrário do que a adoração ao objeto. Convida a todos os presentes a viajar com a Torá para permitir que suas mensagens também viajem, constantemente, através de toda a história da humanidade e de toda a geografia do mundo, por meio das histórias individuais e os corpos pessoais.
Shabat shalom,
Rabino Dr. Ruben Sternschein