Prédicas – rabino Dr. Ruben Sternschein
O último dia
O que você faria se soubesse que hoje é seu último dia? Voltaria ao local que mais gosta? Andaria pela neve? Pela areia? Entraria no mar? Sentiria uma brisa gostosa? Veria o nascer ou o pôr do sol? Degustaria seu prato favorito? Estaria com as pessoas que realmente gosta e ama? E o que faria com elas? Aproveitaria o silêncio cúmplice dos que se entendem sem falar? Diria algo que nunca disse? Revelaria algum segredo? Aproveitaria suas últimas horas para alguns pensamentos ou para emoções? Amaria, riria, denunciaria ou lutaria por alguma causa?
A pergunta é importantíssima. É, afinal, a pergunta de Rosh Hashaná – que nada mais é do que o aniversário do mundo, da humanidade, da vida – quando somos julgados sem garantias de sair vivo…
O que você faria, então, no seu último dia? Faria esforços para deixar pronta sua melhor contribuição, sua marca, sua memória? Terminaria de fazer algo que acredita ser bem importante?
Focaria mais no que levar ou no que deixar? Pegaria mais ou deixaria mais? Gostaria de sentir e viver mais ou de dar e doar mais?
E se fosse também o último dia do mundo? Isso mudaria as coisas? Seria relevante somente o que você viveria, (uma vez que o mundo acabaria e não haveria o que deixar)? O que pegaria para si e para os seus queridos, para os próximos? Se o mundo está deixando de existir, o amanhã ainda seria uma meta? Será que os valores em si valem e mandam? No último dia, talvez você simplesmente continuaria fazendo o que já faz? Será que vivemos uma vida digna do último dia?
Janusz Korczak era o grande educador que dirigia um orfanato modelo antes e durante a Shoá. Ele teve a oportunidade de se salvar várias vezes, mas ele rejeitou todas as ofertas. Ele queria ficar até o último dia fazendo o que fazia todos os dias, sendo ele mesmo e fazendo sua obra: cuidando das crianças – e neste caso fazendo com que a morte trágica seja o mais leve possível, até o último suspiro na câmara de gás, onde morreu abraçando elas. Houve vários Korczak. Pais, mestres e rabinos que puderam se salvar individualmente e preferiram usar seu último dia para morrer como viveram, sendo eles mesmos através do que faziam por outros, e ficaram do lado de filhos, netos, alunos, comunidades. Jovens que podiam se unir a partisãos, mas ficaram para morrer ajudando a diminuir o sofrimento de seus vovós até o último minuto. Obviamente não estamos julgando qualquer vítima da Shoá que tenha morrido total ou parcialmente como os sobreviventes. Todos eles morreram lá de algum modo e são absolutamente injulgáveis, na minha opinião de filho e neto de sobreviventes e mortos. Os Korczaks representam um modelo de resposta a nossa pergunta inicial. Morrer como viveu, viver fazendo cada dia o mais digno, entregado a seus valores a suas causas, sendo assim ele mesmo.
Isaac Asimov, autor de várias obras de ficção científica (algumas delas viraram realidade) na saga A Fundação, encena um cientista processado pelo governo por trazer dados impopulares sobre a destruição iminente do mundo (qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, pois Asimov escreveu nos anos 1940-1950).
O secretário de segurança lhe reclama:
– Que importância tem o que aconteceria dentro de três séculos se continuarmos vivendo assim, se de todo modo tudo vai acabar em um século segundo seus cálculos, senhor cientista?!
– Chame isso de romantismo, paixão, amor pela humanidade, comprometimento – responde o cientista.
Cuidaríamos do mundo mesmo se fosse acabar inevitavelmente? Por quê? Por que razão em geral cuidaríamos do mundo em qualquer situação? Será por que desse modo cuidamos de nós? Cuidamos da terra, do mato, da água para cuidar de nós? Cuidamos dos vizinhos e até dos inimigos para que eles nos deixem em paz? A Torá adverte que as árvores devem ser cuidadas no meio de uma guerra… Algumas interpretações aprendem que não adianta ganhar um território e acabar com suas árvores, pois sem elas, os vencedores também ficarão vencidos – ou seja cuidar das árvores para cuidar de nós. Outra linha interpretativa, entretanto, sugere que o mandamento é cuidar das árvores por elas mesmas, protegê-las da ameaça humana, porque elas merecem viver por elas, em si. Talvez cuidaríamos do mundo porque é o único que realmente conta e existe, pois nós somos apenas um detalhe passageiro.
Então deveríamos formular a pergunta inversa: por que cuidarmos de nós? Por que é o que temos à mão? A única coisa que está nas nossas mãos, ou seja, porque é a única forma que temos de cuidar do mundo?
Rosh Hashaná parece nos dizer isso, pois é o aniversário do mundo celebrado na mais íntima introspecção do indivíduo.
De quem cuidar é uma das perguntas centrais deste momento no Brasil, EUA, Inglaterra e Israel. Os nacionalismos, as direitas, se focam no cuidado dos próximos, dos próprios, dos iguais, dos membros da nação. Acreditam que o dever de um governo é velar pelo bem-estar dos “próprios”, dos membros do Estado, mas qual é o limite? O que pode se fazer com os “outros”, os que não pertencem às outras nações, para defender e promover os interesses dos “próprios”? Não há limites? Os outros não contam? Na verdade esses limites são um desafio para as esquerdas também. George Orwell na Revolução dos Bichos já denunciou que no comunismo havia e há “iguais” e “mais iguais”, que ganham mais privilégios e são mais cuidados justamente por serem próximos do partido, de suas ideias e de seus valores. Cuidar dos próximos, dos próprios, dos iguais, será o único modo? O mundo é uma selva, uns são mais dignos que outros, merecem mais, por que o meu caminho é o único? Somente os que defendem meus valores garantem que o mundo exista e, portanto, os outros são inimigos? Ou talvez deva cuidar deles, de novo, por que são os que tenho a mão, por que através dos meus cuidados com o mundo e faço minha parte?
O que diz o judaísmo sobre isso? O judaísmo se vê e se ouve bem particularista. Os não judeus dizem admirar a solidariedade judaica: “os judeus são muito unidos, muito ligados em comunidade, sempre se ajudam, sempre se defendem entre eles” – costumam dizer. Isso é um elogio ou estará implícita a ideia de que o último judeu não se preocuparia com o mundo e deixaria ele acabar, se não houvesse qualquer outro judeu para cuidar?
A Mishná ensina: “Im ein ani li – mi li?” / “Se eu não cuidar de mim quem o faria?” Mas acrescenta em seguida: “Uchsheani leatzmi – ma ani?” / “Se apenas cuido de mim o que sou?”
A frase talmúdica sobre a qual se apoia todo o particularismo que se vê do judaísmo, diz: “Aniei irchá kodmim”, que significa: no cuidado pelos pobres em geral, “os pobres de tua cidade tem prioridade”. Cidade, não povo, não comunidade! A cidade pode ter judeus, cristãos, muçulmanos, ateus, amigos, inimigos, direitas e esquerdas.
Emmanuel Levinas assinala a chave da tensão entre o particular e o universal no judaísmo e, na minha opinião, uma das mais brilhantes e profundas soluções. Os judeus são descritos na bíblia como “am lavadad ishkon uvagoim lo itchashav”, ou seja, “um povo que mora sozinho e não se ocupa nem considera as nações”, mas também como o povo escolhido para ser uma luz para as nações (“or lagoim”). Como podem conviver esses dois princípios opostos? “Não se ocupa das nações” ou tem como objetivo trazer luz para elas? Levinas sugere que se trata do seguinte princípio: redimir o mundo fazendo o melhor de mim. Contribuir com meu aprimoramento. Sem impor, sem esperar, sem reclamar do outro. O contato com o outro me revela a mim mesmo para que seja eu e faça minha parte. Só ela. Qualquer imposição qualquer reclamação seria uma inversão de valores, uma invasão.
O poeta israelense Yehuda Amichai, impactado pelas fontes judaicas, termina meu poema favorito dizendo: “olho no espelho e vejo (em mim) os rostos de muitos outros, olho através da janela e só vejo a mim mesmo”.
Eu sou com e em todos.
A Kabala e a mística judaica em geral concebem o indivíduo como o mundo todo em pequeno. “Haadam hu olam katan”. Tudo é um, tudo repercute, tudo representa tudo. Todos somos parte de um todo e cada um de algum modo é esse tudo também. Em tudo pode se ver a semelhança, a familiaridade. Inclusive no mais distante. Pense no seu rival. Agora olhe para ele imaginando seus pais, seus avós, seus filhos, ou seja: imagine ele sendo filho, neto, pai e avô. Sinta seus medos, fraquezas, tristezas, desejos, sua aspiração à felicidade. Veja seus nascimentos e seus lutos.
Olhar para todos e para tudo como se fossem eu, minha família. Um dos mandamentos mais emblemáticos do judaísmo diz: “bechol derachecha daehu!” Achar o divino de tudo e vivê-lo, viver em virtude dele. Não mais interesses mesquinhos imediatos. Levinas diz que os acordos de paz devem ultrapassar os contratos interesseiros e se tornar verdadeiras pacificações de seus indivíduos. Usar a concretude, seja na política, no trabalho, numa discussão, numa negociação, não mais para ganhar um detalhe imediato e mesquinho e sim para realizar o mais elevado e profundo. De mim, de você, do judaísmo, do mundo.
Então: como viver o último dia? Cuidando de mim ou do mundo? Se fosse o meu ou o do mundo – tanto faz! Cuidar do mundo e de mim é o mesmo. O último dia do mundo e o próprio são o mesmo. Rosh Hashaná é o aniversário do mundo celebrado em teshuvá, a maior introspecção intimista e pessoal possível. É o julgamento do mundo e de mim mesmo, ao mesmo tempo. O julgamento e a celebração do mundo através de mim. De meu aperfeiçoamento em prol do tudo e vice-versa: cuido do mundo através de mim e cuido de mim através da forma em que sou no mundo e para o mundo.
Ver a eu mesmo em cada um, e ver Deus, ver em cada momento o último, viver a vida, cada dia, cada ação, como se fosse o último, dando a cada coisa, a cada pessoa a cada momento o máximo valor.
- J. Heschel acrescentou mais um aspecto. Segundo ele a dimensão divina não enfatiza o fato de que tudo pode ser o último senão, pelo contrário, que tudo tem uma repercussão infinita que nos transcende. Tudo que fazemos continua impactando também quando já não estivermos. O divino nos traz essa responsabilidade.
A proposta de Rosh Hashaná é viver cada experiência, cada momento, cada pessoa, cada palavra e cada silêncio se perguntando: isto é digno do último dia? É digno de se perpetuar para sempre? Esta frase que vou dizer é digna de ser minha última palavra e ficar reverberando no ar após minha morte? Esta ação? E esta atitude? E este vínculo? Assim cada dia, cada passo, cada olhar, cada pensamento, cada emoção, cada intenção serão provas de que merecemos estar e ser – e valerão a pena.
Shaná Tová.
Rabino Dr. Ruben Sternschein
O que faríamos se Deus aparecesse?
Pedidos, reclamações, gratidões – a quem se endereçam, qual seu conteúdo e qual seu efeito?
O que você faria se soubesse que hoje é seu último dia? Voltaria ao local que mais gosta? Andaria pela neve? Pela areia? Entraria no mar? Sentiria uma brisa gostosa? Veria o nascer ou o pôr do sol? Degustaria seu prato favorito? Estaria com as pessoas que realmente gosta e ama? E o que faria com elas? Aproveitaria o silêncio cúmplice dos que se entendem sem falar? Diria algo que nunca disse? Revelaria algum segredo? Aproveitaria suas últimas horas para alguns pensamentos ou para emoções? Amaria, riria, denunciaria ou lutaria por alguma causa?
A pergunta é importantíssima. É, afinal, a pergunta de Rosh Hashaná – que nada mais é do que o aniversário do mundo, da humanidade, da vida – quando somos julgados sem garantias de sair vivo…
O que você faria, então, no seu último dia? Faria esforços para deixar pronta sua melhor contribuição, sua marca, sua memória? Terminaria de fazer algo que acredita ser bem importante?
Focaria mais no que levar ou no que deixar? Pegaria mais ou deixaria mais? Gostaria de sentir e viver mais ou de dar e doar mais?
E se fosse também o último dia do mundo? Isso mudaria as coisas? Seria relevante somente o que você viveria, (uma vez que o mundo acabaria e não haveria o que deixar)? O que pegaria para si e para os seus queridos, para os próximos? Se o mundo está deixando de existir, o amanhã ainda seria uma meta? Será que os valores em si valem e mandam? No último dia, talvez você simplesmente continuaria fazendo o que já faz? Será que vivemos uma vida digna do último dia?
Janusz Korczak era o grande educador que dirigia um orfanato modelo antes e durante a Shoá. Ele teve a oportunidade de se salvar várias vezes, mas ele rejeitou todas as ofertas. Ele queria ficar até o último dia fazendo o que fazia todos os dias, sendo ele mesmo e fazendo sua obra: cuidando das crianças – e neste caso fazendo com que a morte trágica seja o mais leve possível, até o último suspiro na câmara de gás, onde morreu abraçando elas. Houve vários Korczak. Pais, mestres e rabinos que puderam se salvar individualmente e preferiram usar seu último dia para morrer como viveram, sendo eles mesmos através do que faziam por outros, e ficaram do lado de filhos, netos, alunos, comunidades. Jovens que podiam se unir a partisãos, mas ficaram para morrer ajudando a diminuir o sofrimento de seus vovós até o último minuto. Obviamente não estamos julgando qualquer vítima da Shoá que tenha morrido total ou parcialmente como os sobreviventes. Todos eles morreram lá de algum modo e são absolutamente injulgáveis, na minha opinião de filho e neto de sobreviventes e mortos. Os Korczaks representam um modelo de resposta a nossa pergunta inicial. Morrer como viveu, viver fazendo cada dia o mais digno, entregado a seus valores a suas causas, sendo assim ele mesmo.
Isaac Asimov, autor de várias obras de ficção científica (algumas delas viraram realidade) na saga A Fundação, encena um cientista processado pelo governo por trazer dados impopulares sobre a destruição iminente do mundo (qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, pois Asimov escreveu nos anos 1940-1950).
O secretário de segurança lhe reclama:
– Que importância tem o que aconteceria dentro de três séculos se continuarmos vivendo assim, se de todo modo tudo vai acabar em um século segundo seus cálculos, senhor cientista?!
– Chame isso de romantismo, paixão, amor pela humanidade, comprometimento – responde o cientista.
Cuidaríamos do mundo mesmo se fosse acabar inevitavelmente? Por quê? Por que razão em geral cuidaríamos do mundo em qualquer situação? Será por que desse modo cuidamos de nós? Cuidamos da terra, do mato, da água para cuidar de nós? Cuidamos dos vizinhos e até dos inimigos para que eles nos deixem em paz? A Torá adverte que as árvores devem ser cuidadas no meio de uma guerra… Algumas interpretações aprendem que não adianta ganhar um território e acabar com suas árvores, pois sem elas, os vencedores também ficarão vencidos – ou seja cuidar das árvores para cuidar de nós. Outra linha interpretativa, entretanto, sugere que o mandamento é cuidar das árvores por elas mesmas, protegê-las da ameaça humana, porque elas merecem viver por elas, em si. Talvez cuidaríamos do mundo porque é o único que realmente conta e existe, pois nós somos apenas um detalhe passageiro.
Então deveríamos formular a pergunta inversa: por que cuidarmos de nós? Por que é o que temos à mão? A única coisa que está nas nossas mãos, ou seja, porque é a única forma que temos de cuidar do mundo?
Rosh Hashaná parece nos dizer isso, pois é o aniversário do mundo celebrado na mais íntima introspecção do indivíduo.
De quem cuidar é uma das perguntas centrais deste momento no Brasil, EUA, Inglaterra e Israel. Os nacionalismos, as direitas, se focam no cuidado dos próximos, dos próprios, dos iguais, dos membros da nação. Acreditam que o dever de um governo é velar pelo bem-estar dos “próprios”, dos membros do Estado, mas qual é o limite? O que pode se fazer com os “outros”, os que não pertencem às outras nações, para defender e promover os interesses dos “próprios”? Não há limites? Os outros não contam? Na verdade esses limites são um desafio para as esquerdas também. George Orwell na Revolução dos Bichos já denunciou que no comunismo havia e há “iguais” e “mais iguais”, que ganham mais privilégios e são mais cuidados justamente por serem próximos do partido, de suas ideias e de seus valores. Cuidar dos próximos, dos próprios, dos iguais, será o único modo? O mundo é uma selva, uns são mais dignos que outros, merecem mais, por que o meu caminho é o único? Somente os que defendem meus valores garantem que o mundo exista e, portanto, os outros são inimigos? Ou talvez deva cuidar deles, de novo, por que são os que tenho a mão, por que através dos meus cuidados com o mundo e faço minha parte?
O que diz o judaísmo sobre isso? O judaísmo se vê e se ouve bem particularista. Os não judeus dizem admirar a solidariedade judaica: “os judeus são muito unidos, muito ligados em comunidade, sempre se ajudam, sempre se defendem entre eles” – costumam dizer. Isso é um elogio ou estará implícita a ideia de que o último judeu não se preocuparia com o mundo e deixaria ele acabar, se não houvesse qualquer outro judeu para cuidar?
A Mishná ensina: “Im ein ani li – mi li?” / “Se eu não cuidar de mim quem o faria?” Mas acrescenta em seguida: “Uchsheani leatzmi – ma ani?” / “Se apenas cuido de mim o que sou?”
A frase talmúdica sobre a qual se apoia todo o particularismo que se vê do judaísmo, diz: “Aniei irchá kodmim”, que significa: no cuidado pelos pobres em geral, “os pobres de tua cidade tem prioridade”. Cidade, não povo, não comunidade! A cidade pode ter judeus, cristãos, muçulmanos, ateus, amigos, inimigos, direitas e esquerdas.
Emmanuel Levinas assinala a chave da tensão entre o particular e o universal no judaísmo e, na minha opinião, uma das mais brilhantes e profundas soluções. Os judeus são descritos na bíblia como “am lavadad ishkon uvagoim lo itchashav”, ou seja, “um povo que mora sozinho e não se ocupa nem considera as nações”, mas também como o povo escolhido para ser uma luz para as nações (“or lagoim”). Como podem conviver esses dois princípios opostos? “Não se ocupa das nações” ou tem como objetivo trazer luz para elas? Levinas sugere que se trata do seguinte princípio: redimir o mundo fazendo o melhor de mim. Contribuir com meu aprimoramento. Sem impor, sem esperar, sem reclamar do outro. O contato com o outro me revela a mim mesmo para que seja eu e faça minha parte. Só ela. Qualquer imposição qualquer reclamação seria uma inversão de valores, uma invasão.
O poeta israelense Yehuda Amichai, impactado pelas fontes judaicas, termina meu poema favorito dizendo: “olho no espelho e vejo (em mim) os rostos de muitos outros, olho através da janela e só vejo a mim mesmo”.
Eu sou com e em todos.
A Kabala e a mística judaica em geral concebem o indivíduo como o mundo todo em pequeno. “Haadam hu olam katan”. Tudo é um, tudo repercute, tudo representa tudo. Todos somos parte de um todo e cada um de algum modo é esse tudo também. Em tudo pode se ver a semelhança, a familiaridade. Inclusive no mais distante. Pense no seu rival. Agora olhe para ele imaginando seus pais, seus avós, seus filhos, ou seja: imagine ele sendo filho, neto, pai e avô. Sinta seus medos, fraquezas, tristezas, desejos, sua aspiração à felicidade. Veja seus nascimentos e seus lutos.
Olhar para todos e para tudo como se fossem eu, minha família. Um dos mandamentos mais emblemáticos do judaísmo diz: “bechol derachecha daehu!” Achar o divino de tudo e vivê-lo, viver em virtude dele. Não mais interesses mesquinhos imediatos. Levinas diz que os acordos de paz devem ultrapassar os contratos interesseiros e se tornar verdadeiras pacificações de seus indivíduos. Usar a concretude, seja na política, no trabalho, numa discussão, numa negociação, não mais para ganhar um detalhe imediato e mesquinho e sim para realizar o mais elevado e profundo. De mim, de você, do judaísmo, do mundo.
Então: como viver o último dia? Cuidando de mim ou do mundo? Se fosse o meu ou o do mundo – tanto faz! Cuidar do mundo e de mim é o mesmo. O último dia do mundo e o próprio são o mesmo. Rosh Hashaná é o aniversário do mundo celebrado em teshuvá, a maior introspecção intimista e pessoal possível. É o julgamento do mundo e de mim mesmo, ao mesmo tempo. O julgamento e a celebração do mundo através de mim. De meu aperfeiçoamento em prol do tudo e vice-versa: cuido do mundo através de mim e cuido de mim através da forma em que sou no mundo e para o mundo.
Ver a eu mesmo em cada um, e ver Deus, ver em cada momento o último, viver a vida, cada dia, cada ação, como se fosse o último, dando a cada coisa, a cada pessoa a cada momento o máximo valor.
- J. Heschel acrescentou mais um aspecto. Segundo ele a dimensão divina não enfatiza o fato de que tudo pode ser o último senão, pelo contrário, que tudo tem uma repercussão infinita que nos transcende. Tudo que fazemos continua impactando também quando já não estivermos. O divino nos traz essa responsabilidade.
A proposta de Rosh Hashaná é viver cada experiência, cada momento, cada pessoa, cada palavra e cada silêncio se perguntando: isto é digno do último dia? É digno de se perpetuar para sempre? Esta frase que vou dizer é digna de ser minha última palavra e ficar reverberando no ar após minha morte? Esta ação? E esta atitude? E este vínculo? Assim cada dia, cada passo, cada olhar, cada pensamento, cada emoção, cada intenção serão provas de que merecemos estar e ser – e valerão a pena.
Shaná Tová.
Rabino Dr. Ruben Sternschein