Nos meus estudos rabínicos, tive um professor um pouco sui-generis: era o rabino Stephen M. Passamaneck z”l, que os alunos chamavam carinhosamente de Dr. “P”. Capelão da Polícia de Los Angeles, ele muitas vezes começava a aula colocando seu revólver sobre a mesa da sala, se deliciando com a expressão de choque no rosto de muitos alunos (o meu entre eles).

Foi com o Dr “P” que eu aprendi o princípio segundo o qual “a Torá quer dizer o que os rabinos disseram que a Torá quer dizer.” Do ponto de vista racional, eu sei que ele estava completamente correto e não faltam exemplos de afirmações bíblicas que os rabinos interpretaram de forma criativa, determinando a leitura que temos delas até hoje. Um dos melhores exemplos dessa prática é com relação ao verso “olho por olho, dente por dente” [1], prática que, os rabinos perceberam, se levada à risca, levaria toda a humanidade a ficar cega e banguela. Em uma longa discussão no Talmud [2], os rabinos concluíram que o preceito bíblico obviamente fala de uma compensação financeira a ser recebida pela vítima de uma agressão física! De forma semelhante, o preceito de que “não cozinhe o bezerro no leite de sua mãe” [3] foi interpretado pelos rabinos como a proibição de preparar, comer ou obter benefícios de alimentos preparados com carne e leite (ou seus derivados). Hoje, é até difícil encontrar alguém que, tendo aprendido essa interpretação, consiga ler os versos bíblicos no seu sentido literal.

A parashá desta semana apresenta um desafio para esta leitura com relação à mistura de carne e leite. Três pessoas se aproximam da tenda de Avraham, que corre para pedir que eles parem e sejam recebidos pelo nosso primeiro patriarca. Os visitantes param, lavam seus pés, tomam água, comem pão e encontram uma sombra para descansar da viagem. Avraham não ficou satisfeito e lhes trouxe um prato à base de carne, além de manteiga e leite [4]. Não seria difícil explicar a clara oposição entre as comidas que Avraham oferece aos seus visitantes e as regras alimentares da Cashrut, visto que essas instruções ainda não haviam sido formuladas. Nossos rabinos, no entanto, se sentiram profundamente incomodados vendo o primeiro patriarca misturando carne e leite e buscaram formas de interpretar o texto que eliminassem essa possibilidade: Maimônides (1135-1204) entendeu que toda essa passagem não passou de um sonho profético de Avraham e que, portanto, não houve qualquer tipo de consumo de comidas não casher; um midrash sugere que Avraham trouxe opções de carne e de leite para que seus convidados tivessem escolha, mas que ele ficou observando para garantir que ninguém misturasse a carne e o leite; outros comentaristas afirmam que os visitantes tomaram o leite primeiro e lavaram suas bocas antes de consumir a carne, assim como prescreve a lei judaica.

Me parece que, mais razoável do que esses malabarismos interpretativos, seria reconhecer que as práticas judaicas, incluindo as leis de Cashrut, são construções históricas que refletem uma busca constante e progressiva pela kedushá, a santidade com a qual procuramos encher as nossas vidas. A forma como a busca pela kedushá na alimentação se dava na época de Avraham não era a mesma da época dos profetas, muito menos no período do Segundo Templo ou nos nossos dias. 

Hoje, essa busca pela santidade é expressa em uma conduta guiada por valores, que não são necessariamente os mesmos para todas as pessoas. Para muita gente, ligar suas práticas alimentares à tradição judaica e ao que faziam seus antepassados lhes confere um profundo senso de conexão; para outras pessoas, faz mais sentido buscar práticas contemporâneas como o vegetarianismo, seguir uma dieta vegana ou consumir exclusivamente produtos orgânicos. Práticas distintas, mas todas buscando refletir valores (ou santidade!) por meio da alimentação. 

Que nós, cada um da sua forma, consigamos todos encher nossas vidas de santidade, nas práticas cotidianas e na forma como escolhemos nos alimentar!

 

Shabat Shalom,

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] Ex. 21:24, Lev. 24:20

[2] Talmud Bavli Bava Kama 83b-84a

[3] Ex. 23:19, Ex. 34:26, Deut. 14:21

[4] Gen. 18:1-8