Mishpatím, a parashá desta semana, é apresentada por Gunther Plaut como sendo praticamente um código de lei autônomo – Sefer haBrit (Livro da Aliança), como é referido em Êxodo 24:7. Tanto que suas primeiras palavras (“Estas são as normas…”) evocam a introdução de Devarim (“Estas são as palavras…”), um livro considerado uma Torá em si mesmo. 

Esse conjunto de normas constitui uma verdadeira vanguarda em termos de normas de convivência. A responsabilidade civil é ricamente detalhada nas descrições do cuidado com o boi próprio ou alheio [21:28-37], a reparação do dano temporário e permanente [21:19, 21:23]; a proibição de enganar ou oprimir o estrangeiro [22:20, 23:9], a condenação às fakenews [23:1] e ao falso testemunho [23:2]; a responsabilidade social pelos menos favorecidos [23:11]; e a lista segue. Praticamente a melhor versão do monoteísmo ético se encontra em Mishpatím. Para uma sociedade na qual até mesmo a escravidão era naturalizada, a Torá parece orientar-nos a uma busca pela humanização das práticas existentes.

Em meio a tanta regra que fornece o espírito das leis aos nossos sistemas legais civil e criminal nas esferas trabalhista, previdenciária, de família etc., uma norma muito incômoda e nada explicativa acabou dando margem para um outro sistema legal, o Tribunal do Santo Ofício (conhecido como Tribunal da Inquisição), instituído pelo papa Gregório IX em 1233. A referência em questão é ao versículo “Você não tolerará uma feiticeira” [22:17], que em uma tradução livre, pode ser lida como “Não deixarás viva uma bruxa”. 

No contexto da Idade Média, as bruxas eram parteiras, enfermeiras, médicas. Mulheres que, por seu conhecimento no uso de plantas medicinais para curar doenças, eram portadoras de um estimado poder social. No campo político, o ícone da bruxa é Joana D’arc, a camponesa de 17 anos que, em 1429, comandou o exército francês na luta contra a ocupação inglesa. O feminicídio produzido pela ‘caça às bruxas’ durou mais de 4 séculos e levou à fogueira milhares de mulheres que, por seus conhecimentos médicos e botânicos, ou mesmo por sua liderança política ou religiosa, exerciam um contrapoder ao patriarcado sendo, portanto, uma ameaça ao status quo.

Paradoxalmente à figura demoníaca da bruxa (exclusivamente no feminino), que sequer merece viver, a mesma parashá traz uma figura literalmente angelical (no masculino): “Eu estou enviando um anjo diante de você para guardá-lo no caminho e guiá-lo até o lugar que deixei preparado” [23:20]. Parte da representação do masculino no imaginário coletivo aparece nos versículos que o seguem. Um anjo conhece o caminho e você deve segui-lo e ser-lhe obediente; não o desafie, pois ele não perdoará qualquer rebeldia. O conhecimento que pode conduzir à força e à violência contrasta com um conhecimento que cura. 

Apesar do texto incômodo e até indigesto de Ex. 22:17, me parece que é a intenção do intérprete o que conduz a tal ou qual interpretação. A rabina Esther Hugenholtz exorta a que enfrentemos esses textos difíceis com a coragem de olhar para o nosso lado sombrio, para logo embarcar em uma missão ainda mais difícil, que é extrair deles algum significado que possa servir à nossa humanidade. Somos responsáveis também pela maneira como endereçamos aquilo que lemos e estudamos. 

Uma releitura judaica da figura da feiticeira ou da bruxa é oferecida por correntes judaicas místicas, como a cabalá. O rabino Isaac Luria e seu discípulo Haim Vital incorporaram conhecimentos da alquimia e astrologia aos estudos da Torá, libertando as bruxas de redomas culturais e religiosas. Inspiradas nessas tradições, nascem as comunidades JeWitch, nos Estados Unidos [designação derivada de Jew = judeu; Witch = bruxa]. Tais coletivos centram suas tradições no Tanach, com uma teologia mais voltada à natureza e oferecem oportunidades de expressão a pessoas cujas experiências judaicas não existem isoladamente de outras identidades religiosas, culturais ou espirituais.

O judaísmo nos oferece uma multiplicidade de maneiras de ser no mundo que não cabem em uma caixinha. Nesse sentido, a rabina Lizz Goldstein encoraja as pessoas a abrir seus corações para a magia do mundo e a se abster de amaldiçoar os outros.

Que tenhamos a coragem de liberar nossas bruxas, guardiãs de conhecimentos ancestrais e contemporâneos, detentoras de poderes mágicos nas diferentes áreas nas quais atuamos.

 

Shabat Shalom,

Kelita Cohen

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