“Se houver outros danos, a pena será vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, contusão por contusão.” [Êxodo 21:23-25]

Em paralelo a este trecho da Parashát Mishpatim, uma tirinha da Mafalda propõe uma reflexão:

 – “Se matássemos todos os bandidos, ficariam só os bons, né?

– Não! Ficariam só os assassinos.”

Outra perspectiva de aplicação da mesma lei da Torá foi atribuída a Martin Buber (mas que também aparece como citação de seu contemporâneo indiano Mahatma Gandhi):  

“Se vivêssemos em estrito cumprimento das leis da Torá (quando diz ‘olho por olho’), todos já estaríamos cegos”.

A lei nem sempre é a régua mais confiável para determinar o que é justo ou injusto. Em 1935, o regime nazista promulgou as chamadas Leis Raciais de Nuremberg, baseadas na crença da existência de uma raça pura. Cumprir a lei era fazer tudo o que estivesse ao alcance do Estado ou dos indivíduos para evitar a miscigenação (ou poluição) racial. Por sua vez, infringir as leis talvez fosse a única maneira de implementar a justiça. Isto foi o que fizeram Aracy Guimarães Rosa e o embaixador Souza Dantas, ao se colocarem na condição de criminosos para salvar a vida de judeus perseguidos pelo regime de Adolf Hitler. Em sistemas ditatoriais e totalitários, o sistema jurídico pode ser opressor e injusto.

Este é apenas um dos muitos exemplos que poderíamos citar para sustentar que o direito é uma expressão do seu tempo. As leis de um país, chamadas por alguns teóricos de pacto social, são regras definidas pelas autoridades dessa localidade para regular o comportamento dos indivíduos em um dado contexto, de forma a manter a ordem social.

Franco Montoro, um importante jurista e político brasileiro, escreveu acerca das normas jurídicas que sua aplicação tem um campo marcado pela relação com o tempo (vigência), o espaço (limites territoriais), a matéria da qual trata a norma (cível ou criminal, por exemplo) e com relação às pessoas (maior ou menor de idade, nacional ou estrangeiro, indígenas ou sertanejo). 

Mas se as leis são produto do seu tempo, qual seria a validade das leis da Torá na contemporaneidade? Talvez a Torá tenha chegado até os nossos dias com a importância que a reveste, não pelo seu texto em si. Talvez a letra da lei seja o que tenha prazo de validade, circunscrita a uma época e a uma sociedade determinada. Pode ser que o que persista e subsista no tempo seja o espírito das leis, apreendido a partir de um método interpretativo proposto pelo judaísmo rabínico. 

Apegar-se à letra da lei sem um exercício reflexivo e crítico parece ser o princípio de expressões fundamentalistas que se valem da Torá para subjugar a outrem. E curioso é que o antídoto ao fundamentalismo, segundo a escritora Karen Armstrong, seja justamente o retorno aos textos originais, abarcando todo o mistério e contradições que eles ensejam. Em lugar de um sistema legal, podemos por vezes encontrar uma defesa ao tratamento humanizado às minorias e aos desfavorecidos – como na Parashat Mishpatim, em relação ao escravo ou ao estrangeiro. “Não enganem nem oprimam um estrangeiro, porque vocês foram estrangeiros na terra do Egito; “Quando uma pessoa [dona de escravos] ferir um escravo ou escrava com uma vara, e morrer por sua mão, este será vingado

Gunther Plaut comenta, a respeito dessa porção, que a escravidão era um fato social nos idos tempos bíblicos, e o que a Torá buscava era a melhoria das condições relacionais, em vez de sua abolição. Ainda que, ao contrário da referida lei da Torá, as leis na atualidade versem sobre a proibição à escravatura, há um princípio subjacente ao texto que trata sobre a responsabilidade da pessoa que mantém consigo a guarda de uma pessoa em condição de vulnerabilidade. Esta sim, é uma expressão contemporânea, que nos permite emparelhar realidades tão díspares, a partir de princípios éticos atemporais, e identificar nessa relação o espírito das leis, mais do que a própria letra.

Um olhar sensível à realidade que nos circunda pode permitir uma relação saudável nas nossas leituras semanais da Torá. E quando identificarmos no texto algo que não seja compatível com os princípios de justiça que a Torá propõe de maneira subjacente, podemos lançar mão do 4º mandamento do advogado, proposto pelo jurista uruguaio Eduardo Couture:

“Teu dever é lutar pelo direito; mas no dia em que encontrares um conflito entre o direito e a justiça, luta pela justiça”.

Que a Torá continue sendo um farol, não propriamente na determinação da nossa conduta, tal qual consta na sua prescrição, mas um farol que se abre a uma multiplicidade de olhares, superpostos ao momento presente, permitindo-nos ler a vida e as pessoas, mais do que puramente letras.

 

Shabat Shalom e Chodesh Tov!

Rabina Kelita Cohen

 

 MONTORO, André. 13. Aplicação das Normas Jurídicas no Espaço e no Tempo In: MONTORO, André. Introdução à Ciência do Direito. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2020. 

2 ARMSTRONG, Karen. A Arte Perdida das Escrituras. Resgatando os textos sagrados. São Paulo (SP): Editora Schwarcz. 2024. 

3 Êxodo 22:20

4 Êxodo 21:20