Nesses dias, a discussão sobre o “abuso de poder religioso” no Supremo Tribunal Federal trouxe de volta à ordem do dia a questão sobre a relação entre religião e política ou, colocado de outra forma, qual participação critérios religiosos devem ter na vida pública. De um lado, o Brasil é um país laico, onde vigora (ou deveria vigorar) a separação entre religião e estado; de outro, as religiões acabam definindo valores e posições políticas de seus integrantes. Religiões não se ocupam apenas do metafísico, da relação do ser humano com o Divino, mas também da relação entre as pessoas, das formas como nos tratamos e como organizamos nossas sociedades. O judaísmo coloca especial atenção à forma como tratamos os segmentos mais vulneráveis e oprimidos das nossas comunidades e coloca a proteção deles na categoria de obrigação religiosa. O rabino Abraham Joshua Heschel expressou esse conceito de forma bastante clara quando, ao terminar uma marcha pelos direitos civis dos afro-americanos ao lado do Reverendo Martin Luther King Jr. em 1965, afirmou “para muitos de nós, a marcha de Selma a Montgomery foi sobre protesto e oração. Pernas não são lábios e andar não é se ajoelhar. E, no entanto, nossas pernas entoaram canções. Mesmo sem palavras, nossa marcha era reza. Senti que minhas pernas estavam rezando.” [1]

A parashá desta semana, Shoftim, está entre aquelas que coloca as questões de organização social no centro das preocupações judaicas. Entre os temas que aborda estão a organização do sistema judicial, critérios para a escolha de monarcas e normas para sua conduta, alertas para falsos profetas que abusem do nome de Deus para avançar seus objetivos pessoais e regulação para conduta ética em situações de guerra. Entre suas frases icônicas, está “Tsedek, tsedek tirdof”, “a mais absoluta forma de justiça você deve buscar”. [2]

A busca por justiça continua nos nossos dias, assim como a discussão sobre qual seria “a mais absoluta forma de justiça” que devemos buscar. Para alguns, trata-se de estabelecer as estruturas de um sistema judicial que trate a todos de forma idêntica, sem considerar as condições subjetivas; para outros, a definição vai na direção contrária e a justiça verdadeira só pode ser estabelecida quando compreendemos os contextos que levam cada um dos agentes a agir de determinada forma. Paradoxalmente, encontramos no judaísmo elementos que dão sustentação a essas duas abordagens.

Qualquer que seja nossa visão para um cenário no qual a justiça reine, estamos muito longe dele e temo que estejamos caminhando no sentido contrário, aprofundando as injustiças na sociedade brasileira. Nesse contexto, é fundamental que não normalizemos esta conjuntura e continuemos buscando “a mais absoluta forma de justiça.”

Elie Wiesel nos conta que uma pessoa justa que vivia na cidade de Sdom, onde esta qualidade era rara, e que andava pelas ruas da cidade protestando pelos atos de injustiça que testemunhava. A cidade ria dele e do seu protesto. Finalmente, uma pessoa jovem lhe perguntou por que continuava protestando mesmo quando era claro que ninguém prestava atenção. A resposta da pessoa justa deve servir de alerta para a situação em que vivemos hoje: “no começo, eu achava que podia mudar as pessoas. Hoje, eu reconheço que não posso. Mesmo assim, se eu continuar a protestar, eu terei prevenido que os outros me mudem.” [3]

Que a busca pela justiça e a preocupação com aqueles que sofrem os maiores impactos do ambiente injusto em que nos encontramos continuem determinando nossos atos e que consigamos encontrar parceiros e aliados que nos ajudem nesse processo.

Shabat Shalom

Rabino Rogério Cukierman

[1] Michael Shire, “The Jewish Prophet: Visionary Words from Moses and Miriam to Henrietta Szold and A.J. Heschel”, p. 121.

[2] Deut. 16:20

[3] Harvey J. Fields, “A Torah Commentary for Our Times: volume three, Numbers and Deuteronomy”, p. 141.