Ao longo de todo o ano, a partir de Simchat Torá vamos trilhando a leitura do texto bíblico em porções sequenciais. Em Pêssach fazemos uma pausa nessa sequência. Ao longo de 8 dias, percorremos textos relacionados com a festividade que se encontram dispersos em 4 livros da Torá: Shemot, Vaicrá, Bamidbar e Devarim. 

Começamos e terminamos esses 8 dias com Iom Tov (dias festivos) e os dias intermediários são chamados de Chol Hamoed, uma pausa dentro da pausa. Em cada Shabat, interrompemos o cotidiano da semana para um espaço de sacralidade maior. Em Chol Hamoed, interrompemos a sacralidade da semana festiva para trazer um pouco de cotidianidade ao sagrado. 

Neste ano, o Shabat acontece dentro de Chol Hamoed de Pêssach. Os limites entre ordinário e extraordinário se misturam. Se separam e se encontram em linhas muito tênues, estreitas. E Pêssach é exatamente a celebração que nos lembra a saída de Mitsrárim – de lugares estreitos. 

A porção da Torá para este Shabat também nos fala de aberturas estreitas, fendas na rocha. Moisés pede a Deus para contemplar sua presença [Ex. 33:18]. Parece ser um pedido estranho, especialmente em meio a um diálogo no qual se supõe que ambos os interlocutores estejam presentes. Moisés parece demandar a concretude das palavras que recebia de Deus. ‘Davar’, em hebraico, tanto significa ‘palavra’ quanto ‘coisa’. É como se as palavras precisassem ter também forma, tamanho, peso, para que pudessem se relacionar com a dimensão humana.

Na fissura da rocha, a visão da presença divina. A fenda que separa é também a que une o humano do divino. Ao evocar a presença de algo ou alguém, automaticamente transformamos a ausência em presença. Esse é também um mecanismo que usamos para manter o elo que nos conecta com nossos seres queridos que já não se encontram fisicamente conosco. A memória funciona como essa fenda.

Manter a presença requer esforço e manifestação da vontade de se conectar. “Não me lances da tua presença!”, clamamos [Salmo 51:13]. Em Pêssach pedimos para ver a presença divina e nos esforçamos para mantê-la conosco. Em Iom Kipur, adicionamos o Salmo 51 porque valorizamos esse contato. Nos últimos tempos, este salmo também passou a ser cantado como nigún na manhã de Shabat, assim como cantamos mi chamicha – a canção da liberdade.

Ao longo da semana vamos passar por um caminho estreito que se abre em meio a um mar de águas. Em Pêssach Dorot, somos convidados não apenas a contar a história da saída dos israelitas de Mitsráim, mas a comemorar o chag como sendo nós mesmos os que reconhecemos o que nos amarra e trilhamos caminhos rumo à liberdade. O limite que separa a liberdade da escravidão também é tênue como essa passagem. 

Que este Shabat Chol haMoed Pêssach nos inspire a abrir espaços de contato entre nós e a presença divina, e entre nós e o divino que há nos nossos semelhantes.

 

Shabat Shalom!

Kelita Cohen