Agradecer ao coronavírus?

O coronavírus já é, sem dúvida nenhuma, uma catástrofe. Antes de qualquer reflexão sofisticada, estratégica, filosófica, religiosa, psicológica, política, econômica, midiática ou médica, devemos tomar o tempo para reconhecer na mente, no espírito e na emoção, a tragédia de cada uma das milhares de vidas que nem temos oportunidade de individualizar e humanizar. Se, por um momento, tentássemos imaginar os corações dos milhares de filhos e netos, pais e avós, que perderam seus entes queridos, impotentes diante da doença física, social, científica e econômica… Se pudéssemos tentar sentir com eles a tristeza de não poder ajudar nem se despedir, nem falando com eles, nem apertando suas mãos, nem ouvindo suas vozes, nem olhando para seus olhos, nem enterrando seus corpos… Mesmo se tentássemos, não conseguiríamos. Nesse sentido, acima de tudo, estamos diante de uma catástrofe tristíssima que não deve se perder de vista na corrida atrás de soluções, entretenimentos e reflexões.

Também o choque econômico e financeiro que já estamos percebendo nos lados mais vulneráveis da sociedade e que atingirá depois a tantos mais dentre nós, precisa ser sentido e vivido com humanidade individualizadora. Imaginar indivíduos, olhos, mãos, estômagos, corações e lágrimas personalizadas. Não só números, tendências e estratégias.

Todavia, após essa verdade gritante e onipresente, podemos e devemos nos perguntar se também aqui, nessa tragédia global e histórica, temos algo a agradecer. Se há algo que pode nos ajudar a crescer e ser melhores.

Acredito que sim. Muitos já mostraram de modos diversos como o coronavírus nos permite analisar nossas rotinas, nosso apegos a elas e a bens materiais, nosso fugir de nós mesmos e de nossos lares. Muitos já indicamos o cuidado e descuido que temos praticado para com o mundo, a educação, os idosos, a ciência e os mais vulneráveis de nossa estrutura social e econômica. Muitos já apontaram a possibilidade de usar melhor a tecnologia e o tempo para estudar e ler e estar com os próximos. E principalmente para querer viver, escolher viver e não tomar a vida como óbvia.

Entretanto, me parece que a parashá e a véspera de Pêssach nos iluminam mais um insight. 

Na semana prévia a Pêssach geralmente lemos a parashat Tsáv, como neste ano, que entre seus temas mostra os sacrifícios que fariam no Templo e especialmente aquele que expressava gratidão. Diferente de todos os demais que pediam bem-estar, expiação, perdão, pureza, compensação ou assinalavam uma festa, Zevach hahslamim era a oferenda dos que estavam bem, satisfeitos e felizes, e queriam apenas agradecer. Dizer, como na noite do sêder,Dayeinu”, “é suficiente, é o  bastante, não preciso conseguir nem pedir mais nada”. Uma atitude rara para nós, que vivemos consumindo e reclamando. E em particular estranha agora, diante do coronavírus que parece nos tirar tudo.

Será que temos algo para agradecer ao coronavírus?

O sêder de Pêssach começa com o parágrafo que diz: “ah lacham ania”, “este é o pão da pobreza… todo aquele que precisar, que venha e coma conosco; todo aquele que quiser, que venha e celebre conosco…”  Nesse Pêssach todos encontramos nossa vulnerabilidade. Todos descobrimos que todos precisamos e queremos estar com os outros e celebrar juntos a vida e a liberdade. Muitos se voluntariam a ajudar, a dar e até a levar comida. Ao chegarmos a entregá-la, acredito que devamos agradecer tanto quanto quem for recebê-la. Pela oportunidade de cuidar de nós ao cuidar dos outros, de deixar algo de nós com os outros. Assim, durante o sêder isolado, estaremos conectados com quem de nós recebeu e acabou, assim, nos doando sua presença, sua aceitação, sua valorização de nós e sua gratidão. 

Shabat shalom e chag sameach,

Rabino Dr. Ruben Sternschein