Atualidade ética e social das fantasias talmúdicas

Muitas vezes, a tradição judaica nos conta histórias por trás da narrativa bíblica que não têm nenhum registro verídico, nem têm evidência alguma no próprio texto da Torá. Assim, por exemplo, a famosa história segundo a qual o patriarca Abraham, quando pequeno, teria destruído as estátuas que vendia o pai, não conta com nenhum indício sequer no texto da Torá. Nem aparece a mínima insinuação de que Terach tivesse uma loja de estátuas. Nada é relatado sobre a infância de Abraham.

No nosso judaísmo liberal tentamos achar uma mensagem nessas estórias da história. As lemos com carinho e expectativa, não como evidência, mas também não com cinismo.

Acreditamos que a razão de sua existência poderia encontrar-se escondida em alguma problemática do texto da Torá à qual as histórias tentaram responder ou, pelo menos, denunciar.

Ao redor da parashá da semana contam-se também algumas histórias na tradição talmúdica. No relato, Côrach , junto com algumas centenas de pessoas, se queixaram a Moisés pelo seu poder. Deus os castigou fazendo com que a terra os engolisse. As histórias acrescentadas contam detalhes sobre a suposta campanha de Côrach  para desbancar Moisés. Segundo uma delas, Côrach  seria quem construiu o bezerro de ouro, quem liderou todas as tentativas de voltar a Egito e perguntava porque o talit devia ter apenas um fio azul-celeste, ao invés de ser tudo azul-celeste. Inclusive, haveria prometido dar a todo o povo talitot azuis-celestes.

Surgem, pelo menos, duas perguntas diante dessas histórias:

A) Por que a tradição resolveu atribuir tudo isso a Côrach ?

B) Que tipo de desafio representaria mais ou menos azul-celeste no talit?

A primeira pergunta poderia sugerir uma resposta maravilhosa do ponto de vista ético-teológico: se os sábios acharam necessário acrescentar culpas a Côrach  além do que a Torá falou, significaria que, segundo eles, o que a Torá lhe atribui não é suficiente para justificar o castigo que Côrach  recebeu! Ou seja, os sábios se atreveram a ler a Torá de um modo tão crítico que não suportou a conduta do próprio Deus. Eles não aceitariam um argumento do tipo “Deus deve ter suas razões para agir com severidade extrema”, ou “Deus tem outra ética”, ou “essa vida não interessa pois, a que vem depois, é mais importante”.

Da existência dessa história surgem várias conclusões muito relevantes para nós.

  1. Primeiro a Torá deve ser lida de forma crítica e séria para que faça sentido. Não como um conto inadmissível e intocável. Deve ser motivo de discussão comprometida com o leitor.
  2. A ética de Deus e a nossa é uma. Precisamos poder entendê-la para exercê-la com responsabilidade. Uma religiosidade sem ética seria perigosa além de irrelevante.
  3. Esta vida é um valor em si mesmo, deve ser cuidada e respeitada por todos e para todos. 
  4. Deus precisa ser ético e justo para ser Deus.

Portanto, Côrach deve ter feito mais do que a Torá conta. Em outras palavras: o texto da Torá solto poderia conduzir a uma teologia pouco ética e seria inaceitável.

A resposta para a segunda pergunta precisa de alguns dados literários e históricos: o celeste era muito caro, apenas os reis o vestiam, e representava o céu. O ato atribuído a Côrach  seria uma demagogia extrema e um desperdício. Moshe teria respondido que, além de talit azul-celeste ser uma ostentação desnecessária, um atentado contra a sustentabilidade e um mal exemplo de valores para o povo; o azul-celeste, ao representar o céu, precisa ser distribuído simbolicamente entre todos e cada um, em pequenas dosagens. Desse modo, todo mundo entenderia que o céu completo não é de ninguém. Todos temos apenas uma parte. 

Para ter um céu completo, todos precisamos de todos. Precisamos acreditar que todos os demais, assim como nós mesmos, temos uma parcela de céu, diferente da nossa e igualmente necessária. 

Todos são necessários para que cada um possa ter todo o céu.

Shabat shalom

Rabino dr. Ruben Sternschein