Nesta época do ano, os rabinos precisam escrever muitas prédicas. Além dos textos para as cerimônias do dia-a-dia, como casamentos, brit-milá, enterros, simchát-bat, bar e bat mitsvá e shabatot, como esse aqui, precisamos produzir as mensagens de Rosh Hashaná e Iom Kipur.

E essas são prédicas que exigem uma grande preparação. Afinal de contas, a comunidade inteira estará reunida nesse período. Milhares de pessoas vêm para a sinagoga, muitas delas aparecem apenas nesse momento do ano. A expectativa é alta, afinal de contas, voluntários e profissionais da entidade passaram os últimos meses antes das Grandes Festas preparando cada detalhe para o sucesso do evento. Aliás, o nome, por si só, em todos os idiomas, já dá frio na barriga. Grandes Festas. Days of Awe. Altas Fiestas. Iamim Noraim.

Assim como um autor que precisa escrever livros porque tem contrato com sua editora, ou um compositor que precisa entregar sua partitura preenchida para a gravadora, também nós, rabinos, somos assombrados por aquele medo de algo que não vale a pena nem dizer em voz alta. “O branco”. E se a inspiração não vier, e se eu não conseguir produzir nada? E se meu texto for medíocre, raso, desinteressante? Então, terei decepcionado meu público, minha mãe, a mim mesmo.

No caso da prédica produzida pelo rabino, existe ainda a preocupação de que o texto seja judaicamente relevante. Seja do ponto de vista do fortalecimento da prática de rituais ou aprofundamento de debates morais, o texto do religioso deve estimular uma transformação. Por vezes irá tranquilizar, em outras ocasiões vai justamente gerar um desconforto despertador. O veículo principal é a releitura de textos antigos com olhar contemporâneo. A ressignificação que aproxima e imprime relevância renovada.

A prédica das Grandes Festas nasce, muitas vezes, da maneira mais inusitada possível. Durante a leitura de um romance ou um artigo no jornal, de uma conversa informal ou uma viagem. A verdade é que, durante o ano inteiro, a mais inocente das experiências pode impulsionar a reação: “isso daria um bom assunto para as Festas”.

Então, nesta semana, dias antes de Rosh HaShaná, tomei uma decisão de abrir o jogo e fazer um exercício neste texto, aqui, agora, junto com vocês. Nos próximos minutos, vou revelar as fórmulas que utilizo para criar uma prédica. Com a esperança de que essa confissão irá aliviar a tensão que esse período traz para os profissionais do rabinato. Ou, pelo menos, dividirei um pouco dessa tensão com vocês, que passarão a ser cúmplices na tarefa de produzir senão um texto genial, ao menos um que nos faça dormir tranquilos o suficiente para acordar no dia seguinte e trabalhar no próximo texto.

Antes de mais nada, precisamos de um tema. Claro, somente começa escrever aquele que sabe sobre o que pretende falar. A escolha do tema é chave, é essencial. Embora não seja irreversível, vai determinar todas as demais decisões relacionadas à produção do texto. Portanto, essa escolha merece ser bem feita. O tema pode nascer de diversos lugares. Podemos verificar o que está acontecendo de relevante em nossa comunidade, em nossa cidade, em nosso país, ou no mundo, e esse pode ser o disparador central do sermão. No entanto, o tema pode vir do calendário judaico, o período do ano, a próxima festa ou a parashá da semana.

Uma vez escolhido o tema, a produção do texto poderá começar. Para abrir, é de bom tom encontrar uma fábula, um midrash, um acontecimento real ou fictício, uma piada, de preferência com graça para não deixar sem ela aquela que ousou contá-la. A abertura é de grande importância, é nela que teremos a chance de fisgar a atenção do público, ou perdê-la em definitivo. Nesses primeiros segundos de colóquio, podemos transmitir a seguinte mensagem subliminar: “ei, inconsciente, preste muita atenção, porque o que vem aí é imperdível”. Alternativamente, dependendo da maneira como abrimos nossa fala, a mensagem será a seguinte, “ei, vá em frente, pode dormir porque o que vem aí será enfadonho, superficial, desinteressante e passível de ser encontrado nos três primeiros links de uma busca no Google”.

Em seguida, depois da abertura, o texto deve conter uma introdução, uma tese e uma antítese. Além de explicar o que deverá ser provado, cabe ao orador buscar um caminho para comprovar enfaticamente o que diz. Como toda boa ideia tem alguma oposição, cabe àquele que comunica demonstrar, ele mesmo, os pontos frágeis de sua teoria. Dessa maneira, neutralizará o contraditório que poderá brotar na mente do ouvinte como desculpa para a derradeira desconexão do que está sendo dito. Ou seja, o orador está em um constante exercício de combater a ânsia violenta de quem o ouve de transportar mente e coração para lugar alheio. E de nada adianta vocês fingirem interesse, o orador experiente sabe quando alguém olha para você, sorri para você, mas sua mente está à anos-luz de distância.

Finalmente, uma apresentada. Essa é a hora da puenta, punch line ou grand finale. Esse é o momento de fazer com que tudo faça sentido, ou não. A boa conclusão tem a incrível capacidade de retomar de maneira elegante, sucinta e emocionante todos os tópicos abordados na homilia. O fechamento é a derradeira oportunidade de deixar a principal mensagem registrada de maneira apaixonada e convincente.

Ki Tavô, a parashá deste Shabat, traz uma longa e temível lista de maldições. Talvez tenha faltado uma a mais, a terrível maldição da falta de inspiração que amedronta todos aqueles cujos ofícios encerram expectativa da geração de conteúdo criativo inédito. Mas logo depois da extensa lista de pragas, vem a chave para o alívio: “tahat Asher lo avadta et adnai eloechá bessimchá”, “tudo isso ocorrerá se vocês não servirem o Eterno seu Deus com alegria”. Portanto, o segredo para uma vida abençoada está na possibilidade de rir de si mesmo e dos desafios do próprio ofício, como fizemos nesses últimos minutos de terapia metalinguística que estivemos juntos.

 

Shabat Shalom

Rabino Michel Schlesinger