Haazinu, a segunda e última canção de Moisés, é particularmente diferenciada no texto da Torá por sua estrutura gráfica em versos e estrofes, escrita em duas colunas, seu conteúdo poético repleto de paralelismos e sua sonoridade rítmica e melódica marcada pela assonância.

Não por acaso é a leitura reservada para acontecer exatamente no Shabat Shuva, o Shabat que cai entre Rosh Hashaná e Iom Kipur, completando o percurso de teshuvá de quase 40 dias. 

Assim como este é um período que faz fronteira entre o ano que termina e o ano que começa, o cântico de Moisés também é entoado enquanto ele vivencia vários eventos fronteiriços da sua história. De acordo com nossos sábios [Tanchuma, B’shalach 12], este é o dia da morte de Moisés. E além da fronteira entre a vida e a morte, ele é cantado na divisa com a terra de Canaã, e na fronteira da realização do seu projeto de vida, que era levar um povo escravizado para formar uma nação livre em sua terra.

Nesse momento tão decisivo, de execução de um juízo que aconteceu na Parashat Vaetchanan [Deut. 3:26], Moisés apela para a maternidade protetora da Shchiná, que se apresenta “como uma águia (…) que pousa sobre seus filhotes” (Deut. 32:11]. Assim também Deus “estende suas asas e toma os filhos de Israel e os carrega sob suas penas” [v. 12].

A mesma estratégia é usada por nós quando recitamos Avinu Malkênu, Ao mesmo tempo em que nos dirigimos à figura paterna e soberana (associada a um governante severo, que cumpre a lei), pedimos que este seja misericordioso conosco e nos atenda de forma generosa, compassiva e redentora. O rabino Carl Perkins argumenta que, em uma família, uma mãe não deve ser a fonte exclusiva de compaixão (midat ha-rachamim), nem o pai, a fonte exclusiva de justiça severa (midat ha-din).

No dia do juízo, rogamos por misericórdia, queremos colo. E essa é a metáfora da águia na canção Haazinu. 

E se anteriormente fomos chamados a ouvir – Shemá! – neste momento somos convocados a falar, deixando a escuta para Deus.

Deem ouvidos, ó céus, deixem-me falar;

Que a terra escute as palavras que pronuncio!

Possa meu discurso cair como a chuva,

Minha fala destilar como o orvalho…

[Deut. 32:1-2]

Este é o mesmo chamado feito pelo profeta Oseias na haftará que acompanha a Parashat Haazinu, enquanto nos convoca a fazer teshuvá. “Toma consigo palavras e volte a Adonai” [Oseias 14:3]. 

E o livro de Devarim é exatamente o livro das Palavras. Como observa a rabina Yael Splansky, aquele Moisés que no começo da jornada se apresenta como um homem de poucas palavras (Lo ish d’varim anochi), lento de fala (k’vad pê) e lento de língua (u’ch’vad lashón) [Êxodo 4:10], ao final desse recorrido encontra sua voz.

Neste Shabat Shuva, saibamos escutar as vozes daqueles que nos antecederam, ao mesmo tempo em que possamos fazer bom uso das nossas palavras, para que sejam elas também uma referência para as próximas gerações. 

 

Shabat Shalom! 

Shaná Tová! 

Gmar chatimá tová!



Kelita Cohen

Confira mais comentários sobre a parashat Haazinu: