A Shirat Ha’Iam (Canção do Mar), que abre a parashá desta semana, encanta nossos sentidos e nos transporta para o momento de êxtase e gratidão pela libertação da escravidão. Sua estrutura poética e musicalidade diferenciada parecem aliviar, ao menos por um instante, o peso da aflição que marcou a travessia e as incertezas do porvir.

No entanto, o caminho aberto no Mar dos Juncos não era uma Sapucaí iluminada por holofotes, nem havia arquibancadas repletas de pessoas ovacionando o desfile. Pelo contrário, havia muita água ao redor e escuridão à frente. E, como que para afastar o medo, Miriam toma seu pandeiro e lidera um cortejo musical, seguida pelas filhas de Israel.

Mas, em meio à euforia, lembramos do alimento que sustentou os israelitas em seus primeiros passos fora do Egito: o pão da aflição, representado por nós na matzá—um pão que não teve tempo de fermentar, testemunha da pressa e da opressão que marcaram a fuga.

Logo após a travessia, porém, o povo se vê no deserto, distante das provisões que trouxeram consigo. É nesse cenário que surge um novo alimento: o maná (mān, מָ‏ן, em hebraico), descrito em Êxodo (16:15) como um sustento divino que acompanharia os israelitas por 40 anos. Diferentemente da matzá, símbolo da pressa e da escassez, o maná representa o cuidado contínuo, a abundância diária e a conexão espiritual.

Nossos sábios ensinaram que o maná foi uma das dez maravilhas criadas no entardecer do sexto dia da Criação (Pirkei Avot 5:6), um sustento preparado como parte do plano divino para nutrir e proteger o povo durante a travessia. Essa descrição nos remete a outro alimento igualmente divino e essencial: o leite materno. Assim como o maná, o leite materno é feito sob medida, contendo todos os nutrientes necessários para o crescimento e o desenvolvimento, e adaptando-se às necessidades da criança.

Além das descrições da Torá sobre seu sabor—que “era como pão de mel” (Êxodo 16:31) e, em outro trecho, descrito como tendo “sabor de creme denso” (Números 11:8)—o midrash ensina que o maná podia adquirir o sabor que a pessoa desejasse (Talmud, Yomá 75a). Essa ideia reforça a relação entre o maná e o leite materno, que sacia não apenas a fome, mas também os desejos primordiais da criança.

Tanto o maná quanto o leite materno são expressões de um cuidado amoroso e direto, que nutre o corpo, fortalece a confiança e estreita o vínculo entre quem alimenta e quem é alimentado.

Assim como o leite materno, o maná era concedido em porções diárias, contendo “o quanto cada um necessita para comer” (Êxodo 16:16). Ele não faltava, mas também não poderia ser armazenado—o aprendizado espiritual não dizia respeito apenas ao alimento físico, mas também à confiança. Ao receberem o maná, os israelitas não apenas saciavam sua fome, mas também aprendiam a viver sob o cuidado divino, onde a cada manhã lhes era oferecida uma nova oportunidade de conexão e confiança.

Ao refletirmos sobre essa narrativa, somos convidados a pensar no que nos nutre espiritual e emocionalmente em tempos de transição e incerteza. Que possamos encontrar, assim como o povo no deserto, não apenas o sustento material, mas também o alimento da confiança, que nos fortalece e nos faz crescer.

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen
Academia Judaica da CIP

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