Como a leitura da Torá nas grandes festividades do calendário judaico interrompe seu curso sequencial para se dedicar a uma seleção particularmente temática, um olhar panorâmico do conjunto das parashiot que lemos em Shavuot, antes de irmos ao detalhe do texto em si, revela algumas questões interessantes.

Em Shavuót, lemos novamente os Dez Mandamentos que se encontram na Parashat Itrô, bem como o 3º discurso de Moisés do livro de Devarim, localizado na Parashat Reê, que reafirma leis morais. Que relação pode ter as duas porções? 

Günther Plaut conecta os dois trechos a partir de um versículo da Parashat Itrô. Para Israel se tornar “um reino de sacerdotes e uma nação sagrada” [Ex. 19:6], é preciso criar uma sociedade de justiça, equidade e amor. E, para ele, a porção de Reê antecipada em Shavuót trata dos caminhos que levam a esse objetivo [Deut. 14 e 15].

A preocupação com o social, particularmente com os indivíduos e grupos que se encontram em condições de vulnerabilidade social, está no cerne deste ensinamento. Somos ordenados a separar parte do fruto do nosso trabalho e deixá-lo no assentamento à disposição de quem não recebeu como herança uma porção de terra (neste caso, o levita), o estrangeiro, o órfão e a viúva, para que venham, comam e se saciem [Deut. 14:27-29]. Em termos aristotélicos, se trata de uma justiça distributiva que, segundo a Torá, é a chave para que não mais haja necessitados em nosso meio [Deut. 15:4].

Enquanto as leis que constam no Decálogo orientadas à relação com o próximo nos ensina o que NÃO fazer com o nosso semelhante – não assassinar, não roubar, não cobiçar, não adulterar e não prestar falso testemunho contra o próximo [Ex. 20:13-14], encontramos na porção de Deuteronômio o que SIM, devemos fazer: (i) partilhar o pão com as pessoas do seu território [Deut. 15:21-22]; (ii) levar também sua contribuição 3 vezes ao ano ao lugar que está fora do seu acampamento, e lá se alegrar com sua família, seus trabalhadores (à época, escravos), e com todos os necessitados que houver ali [Deut. 16:11]. É um chamado à responsabilidade por quem vive perto de nós e por quem vive longe. Essa noção amplia o significado de “próximo” para além da territorialidade.

Mas o decálogo não traz apenas mitsvot negativas em relação ao próximo. Apesar da mitsvá que fala sobre o Shabat estar no bloco de mitsvot da relação do ser humano com Deus [Ex. 20:8-11], Micah Goodman ressalta em seu curso “O último discurso de Moisés” uma inovação radical do Shabat trazida por Moisés no reconto de Asséret haDibrot no livro de Devarim. Nessa segunda versão, a ordem é que “seu escravo ou sua escrava possam descansar como você” [Deut. 5:14] – exatamente como você! Em palavras de Micah: “O mandamento não é descansar, como no Êxodo. O mandamento é deixar o escravo descansar”. É um chamado à igualdade. O Shabat é a democratização do privilégio de descansar.

Que nesta celebração de Shavuót, encontremos a inspiração necessária nos textos que estudaremos para sermos sensíveis ao outro e, para adotar as melhores estratégias para transformar estes ensinamentos em ação.

Shabat Shalom e Shavuót Samêach!

Kelita Cohen