A história da escravidão do Povo de Israel no Egito, lembrada no Sêder de Pêssach, neste próximo final de semana, começa a ser contada em Shemót (Êxodo), o segundo livro da Torá. A palavra Shemót significa nomes. Como demonstraremos a seguir, os nomes desempenharam uma função essencial na narrativa que descreve a passagem de uma vida de servidão para outra de liberdade com responsabilidade. Discutiremos a ausência de um nome para o Faraó e a presença dos nomes das parteiras com suas ambiguidades. Em seguida, faremos a releitura de um midrash que também vê na nomeação um dos fatores decisivos da sobrevivência dos hebreus e seu hebraísmo (uma vez que falar de judaísmo no Egito seria anacrônico). Finalmente, veremos como o nome do próprio Deus, e Seu “RG”, sua identidade, foram impactados, de maneira definitiva, pela travessia do Mar Vermelho. 

Em um ato de desobediência civil, duas parteiras decidem desafiar a ordem do Faraó de atentar contra a vida dos recém-nascidos hebreus. No lugar de sacrificar os meninos gerados no ventre das mulheres descendentes de Sara, Rebeca, Raquel e Léa, as parteiras as auxiliam na tarefa de burlar a determinação faraônica e a vida prevalece sobre a morte.

O comentarista Nahum Sarna nos chama a atenção para o fato do Faraó não ser designado por um nome próprio; ele é apenas chamado de Faraó. As parteiras, por outro lado, são recordadas de forma nominal. O objetivo da narrativa bíblica, segundo o comentarista, seria indicar que a maldade, a tortura, a crueldade, a perseguição e o mau morrem com o desaparecimento do ditador, e seu nome não merece nem ser recordado. Por outro lado, o bem, a solidariedade, a defesa da vida, a empatia, e o auxílio são eternizados e duram para sempre como a lembrança dos nomes de Shifrá e Puá.

Outra curiosidade gira em torno da falta de informação sobre a origem das duas doulas. Seriam elas egípcias ou hebreias? Não sabemos. A Torá utiliza a expressão ambígua “meialdót ivriót“, que tanto pode significar “parteiras hebreias”, como entendeu Rashi na França do século XI, ou “parteiras das hebreias”, como preferiram outros comentaristas. Talvez a mensagem contida nessa ambiguidade seja a de que a identidade das parteiras é irrelevante. Quando optamos por fazer o bem, isso não depende de etnia, religião, condição social, gênero ou qualquer outra característica.

Finalmente, existe uma última ambiguidade que vale a pena mencionar. Não fica claro qual teria sido a recompensa das parteiras. Assim está escrito: “E Deus fez bem às parteiras; e o povo aumentou e se tornou muito forte.”

Ytzchak Caro (1458-1535, Espanha) afirma que o fato do povo ter crescido muito foi a recompensa das parteiras. O número de partos aumentou e elas puderam trabalhar mais e ganhar mais dinheiro. A teologia envolvida nessa análise é a de que se agirmos da forma correta, Deus nos dará sustento digno.

No entanto, Zalman Sorotzkin (1881-1966, Lituânia, Jerusalém) acredita que a recompensa não é material, mas uma consequência intrínseca da atitude corajosa das parteiras. Assim como ensinaram nossos rabinos, “sechar mitzvá, mitzvá”, a recompensa de uma mitzvá é a própria mitzvá. As parteiras que tinham a missão de ajudar a gerar vida tiveram a recompensa na segurança de que vidas estavam sendo geradas.

Além dos nomes das parteiras e do Faraó, também os nomes dos israelitas são objeto de discussão da nossa tradição oral. Num midrásh, uma alegoria rabínica, nossos sábios ensinaram que fomos libertados do Egito devido a quatro diferentes fatores:porque não mudamos os nossos nomes, porque não abandonamos nosso idioma, porque não revelamos nossos segredos e não deixamos de lado o ritual da circuncisão (Ialcút Shimoni).

Embora estivéssemos vivendo em um ambiente estranho ao nosso, conseguimos conservar algumas características essenciais de nossa identidade religiosa e cultural e isso nos garantiu a liberdade.

Em um mundo globalizado, temos a falsa impressão de que a liberdade está associada à possibilidade de apagar todas as diferenças culturais e possibilitar a criação de uma grande comunidade global em que todos são iguais. Nesse caso, incorporaríamos uma mesma língua, uma mesma religião, uma mesma identidade. 

No entanto, a abdicação de nossas particularidades é justamente o que nos conduz à escravidão. Quando deixamos de ser um grupo específico de pessoas com uma história própria, com tradições, leis e costumes peculiares, abrimos mão da prerrogativa de sermos diferentes e abraçamos a escravidão do comum.

A sobrevivência na globalização baseia-se no reforço de nossas identidades particulares. Dessa forma, o mundo passa a ser enriquecido por nossa diversidade reafirmada.

Em uma interpretação contemporânea do midrásh, percebemos que aquilo que manteve os israelitas unidos durante a escravidão egípcia serve ainda de defesa para a comunidade judaica do século XXI, contra a ditadura da uniformização cultural e da assimilação.

Para garantir sua liberdade em meio ao sofrimento do cativeiro egípcio, os israelitas conservaram também seu idioma. Em nossos dias, o hebraico precisa ser valorizado e estudado. Essa é a língua que pode aproximar judeus de todas as partes do mundo. O aprendizado do ivrit deve servir de fator determinante de nossa identidade enquanto judeus e reforçar nossos laços com o Estado de Israel.

Segundo os rabinos, também fomos salvos do Egito porque não revelamos nossos segredos. Embora seja possível interpretar essa afirmação de diferentes formas, gostaria de acreditar que um escravo não revelava aos escravizadores os segredos do outro escravo. Dessa forma, constituiu-se uma forte rede de solidariedade entre os hebreus, que os ajudou a se proteger dos opressores egípcios. Em nossos dias, devemos também nos libertar do egoísmo escravizador e adotar uma postura de empatia libertadora.

Finalmente, ainda segundo o midrásh, os israelitas mantiveram o ritual de circuncisão durante os difíceis anos em que serviram ao Faraó. Manter o brit-milá simboliza uma reverência profunda às leis e tradições judaicas. A modernidade pode relativizar a prática deste ou daquele ritual, mas não anula o valor expresso por esses mesmos rituais. Podemos dizer que o judeu da aldeia global não pode se comportar como o judeu do shteitl. No entanto, precisamos buscar uma nova forma de manutenção dos valores que são expressos por nossos mandamentos. O Shabat pode não ser o mesmo do judaísmo medieval, mas seus valores continuam preciosos. Não podemos substituí-lo pela escravidão do nada. Precisamos dedicar tempo para refletir sobre o formato que deve adquirir o Shabat do século XXI.  

Vivemos uma nova forma de escravidão. Abandonamos tudo o que nos torna particular e abraçamos o vazio cosmopolita. A pós-modernidade faz com que identifiquemos em nosso particularismo a chave para a liberdade. A democracia de uma nação mede-se pela possibilidade que seus cidadãos têm de permanecerem diferentes uns dos outros.

Se mantivermos nossos nomes, idiomas, solidariedade e rituais, nos tornaremos dignos da travessia do Mar Vermelho. Quando reafirmamos nossa identidade particular, tornamo-nos dignos da liberdade do mundo globalizado.

E por falar em identidade, Deus tem sua auto-imagem impactada de forma definitiva pelo episódio da saída do Egito. De forma simbólica, é possível dizer que a travessia do Mar Vermelho delegou uma nova identidade ao Criador do Universo.

Quando Deus vai se apresentar no Decálogo, identifica a si próprio como o Deus do Êxodo do Egito. Assim, a liberdade do homem passa a ser parte da identidade de Deus. Hashem não pode conceber um mundo sem a possibilidade dos homens e mulheres escolherem seus próprios caminhos e, assim, assumirem responsabilidade por essas mesmas escolhas.

Com o final da escravidão dos Filhos de Israel, Deus mudou seu RG. A partir de então, no campo em que se lê “nome”, após os dois pontinhos aparecerá: “Eu sou o Eterno Teu Deus, que te tirei da Terra do Egito”.

 

Shabat Shalom e Chag Samêach!

Rabino Michel Schlesinger