A primeira evidência arqueológica do povo judeu é uma estela (uma placa de pedra em que eram feitas inscrições na antiguidade) do século 13 aEC, em que aparece o nome “Israel” associado a um povo que teria sido destruído pelos egípcios. Mais de 3.200 anos depois, continuamos aqui, sinal de que quem escreveu esse texto muito antigo não tinha plena consciência da resiliência do povo judeu. Ao longo dos séculos, foi principalmente pelo nome Israel que o povo judeu foi conhecido, um fato marcado nos nomes das principais instituições judaica brasileiras (por exemplo, CIP, FISESP e CONIB). 

Um salto para o passado mais recente: nas vésperas da declaração da independência de Israel, um grupo de líderes da comunidade judaica na Terra de Israel se reuniu para discutir que nome dariam para o estado judeu. “Iehudá”, a proposta que tinha mais apoio inicialmente, foi descartada porque as fronteiras do estado bíblico com este nome caíam fora do que a partilha da ONU estabelecia para o estado judaico. Outras alternativas, como “Tsión” e “Tsábar” foram consideradas, mas ao final o nome “Israel” venceu a votação por 7 a 3. [1]

A parashá desta semana, Vaishlách, nos conta a origem do nome “Israel”, que o patriarca Iaacóv recebe depois de duelar com um misterioso “homem” nas margens do rio Iabóc. Para entendermos o significado deste nome, é melhor darmos alguns passos para trás e revisitarmos a jornada que levou Iaacóv àquele lugar e àquela luta.

Desde o seu nascimento e ao receber seu primeiro nome, Iaacóv foi um enganador [2]. Ele manipulou seu irmão para obter sua primogenitura [3] e recebeu a bênção de seu pai através de uma mentira. [4] Em vez de enfrentar as consequências de seus atos, Iaacóv fugiu de seus problemas com a ajuda de sua mãe. Como se isso não fosse o bastante para considerá-lo o menos nobre dos patriarcas, em sua primeira interação com Deus, depois de deixar sua casa, Iaacóv estabeleceu condições para seu compromisso com o Divino! [5]

Uma vez em Aram, o destino de Iaacóv mudou lentamente, e, além de ser um enganador, também foi enganado várias vezes: especialmente, por seu sogro e tio, Laván, que lhe deu Leá como esposa em vez de Rachel; [6] Laván tentou enganá-lo novamente na divisão do gado, mas, com a ajuda de Deus e o uso de “genética prática”, Iaacóv evitou ser ludibriado. Mas suas táticas lhe renderam o ódio dos filhos de Laván, e cansado do conflito, Iaacóv decidiu fugir novamente e retornar à terra de seus pais. [7]

Neste ponto, Iaacóv estava começando seu processo de redefinição, mas ainda havia um longo caminho a percorrer; ele tinha tanto medo de seu encontro com seu irmão que não sabia o que fazer: por um lado, orou a Deus mostrando uma humildade que não estava presente quando ele rezou em Bethel, mas, por outro lado, tentou comprar o perdão de seu irmão, enviando-lhe presentes. Quando ele atravessou o rio Iabóc e chegou à terra de Cnaán, ele precisava de algum tempo sozinho para refletir sobre a pessoa que tinha se tornado. Ele deixou sua família de um lado do rio e voltou para o outro lado.

É lá, nas margens do Iabóc, que ele viu Deus face a face. Ele viu a pessoa que se tornou, o enganador, o manipulador, alguém que não podia desenvolver relacionamentos com aqueles ao seu redor e que estava sempre fugindo em vez de enfrentar seus problemas. Ele sonhou com um “homem” que era simultaneamente um anjo, Deus e o próprio Iaacóv. Ele viu um Deus que “forma a luz e cria a escuridão, que faz a paz e cria o mal” [8]. Ele finalmente entendeu seu papel, a responsabilidade de ter a escolha entre o certo e o errado. Foi um processo doloroso, pois Iaacóv teve que reconhecer todos os erros que cometeu. Ao amanhecer, uma parte dele queria acordar desse sonho, se juntar à sua família e seguir em frente, mas Iaacóv resistiu à tentação e continuou lutando consigo mesmo nesse processo de autoanálise, até sentir que era digno de todas as bênçãos que tinha recebido. Em algum momento, o “homem” perguntou seu nome e, chorando, ele respondeu “Iaacóv, o enganador”, e a resposta que recebeu foi “você não precisa mais ser um enganador; seu nome será ‘Israel’, porque você lutou com Deus e consigo mesmo e se tornou uma pessoa melhor”. Intrigado, Iaacóv perguntou “e quem é você para mudar meu nome?”, “você não precisa perguntar, você sabe quem eu sou” foi a resposta. Iaacóv reconheceu a natureza transformadora da experiência que teve nas margens do Iabóc e nomeou o lugar “Peniel” (“face de Deus”), porque ali, pela primeira vez, teve a coragem de se olhar no espelho, e ao fazer isso, viu o rosto de Deus.

Quando o Sol nasceu, encerrou uma noite muito longa na vida de Iaacóv. Quando ele foi encontrar Essáv, ele estava pronto para assumir a responsabilidade pelo relacionamento que tinha com seu irmão (ou pela falta dele). Ele liderou seu acampamento e se curvou ao chão sete vezes, indicando seu arrependimento pela forma como tinha agi, e quando encontrou Essáv, ofereceu-lhe sua bênção. Não era a bênção de seu pai que ele havia recebido no lugar de seu irmão, mas era o que Iaacóv podia oferecer a Essáv. Mas Iaacóv ainda tinha com medo e se recusou a desenvolver um relacionamento profundo com seu irmão. 

Assim como qualquer pessoa que já tenha passado por um profundo processo de transformação pessoal ou coletiva, a mudança de Iaacóv, “o enganador”, para Israel, “aquele que lutou consigo mesmo e com Deus”, é um processo longo e não linear. Ao longo do caminho, o antigo Iaacóv ainda aparece às vezes, exigindo esforço de Israel para manter a mudança e continuar em seu novo caminho.

Também pelo nome “Israel”, o povo judeu foi instruído a sermos aqueles que duelam com Deus e com os homens, que questionam, a cada passo, a si mesmos e as autoridades estabelecidas, que rejeitam os dogmas e as verdades inquestionáveis. É um legado maravilhoso e empoderador e, ao mesmo tempo, difícil e complicado. Não raras vezes, saímos machucados deste processo, mas aprendemos que não há sentido em deixarmos de ser quem somos.

Neste comentário da parashá, me despeço deste espaço. Espero que, ao longo dos quase cinco anos em que participei dele, tenha contribuído um pouco ao processo judaico de reflexão e crítica através do texto da Torá. Nos despedimos oficialmente no Cabalat Shabat do dia 08/12!

 

Shabat Shalom!

Rabino Rogério Cukierman

 

[1] https://bit.ly/3R1WNiT

[2] Gen. 25:26

[3] Gen. 25:29-34

[4] Gen. 27:1-40

[5] Gen. 28:20-22

[6] Gen. 29:16-26

[7] Gen. 30:25-31:3

[8] Isaías, 45:7

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