Gostamos de assinalar a diversidade e o pluralismo como uma das virtudes das fontes judaicas. Especialmente nos contextos judaicos liberais. O convívio de ideias diferentes nos textos e especialmente nas interpretações que a eles foram dadas ao longo dos tempos nos enriquece e aproxima daquela teologia plural estabelecida há quase 2000 anos no Talmud: “umas como outras são as palavras do Deus vivente”.
Existe limite para essa pluralidade? Poderíamos dizer que há interpretações não válidas? Inaceitáveis e inatribuíveis ao que acreditamos ser o espírito divino das sagradas escrituras?
Acredito que sim. Desde o dia 05/11/1995, quando Yigal Amir disse ter aprendido nas fontes judaicas que deveria assassinar o primeiro ministro de Israel, Itzchak Rabin, entendi que devem existir sim limites à interpretação válida. E que devemos denunciar algumas interpretações como erradas para poder extirpá-las. Não há qualquer possibilidade de imaginar que aquela pluralidade divina inclua a ideia de que um projetor de paz é assassino e deve ser assassinado…
Na parashá da semana encontramos dois relatos que foram interpretados, na minha opinião rabinica, acadêmica e humana, de forma absolutamente errada e inadmissível. O texto bíblico é ótimo. A interpretação de certos leitores do passado é muito ruim. Atribui à Torá abominações inexistentes (ao menos neste contexto).
O primeiro é o encontro dos dois irmãos. O texto diz que, depois de 20 anos de silêncio após a despedida trágica cheia de suspeitas, inseguranças e ameaças ao redor da disputa pela bênção paterna, Iaakov e Esaú (já maduros e repletos de sucesso) se abraçam e se oferecem mutuamente grande parte do que cada um acumulou muito além do que precisava. O texto acrescenta que Esaú chorou e beijou Jacob. Um leitor disse “não o beijou: o mordeu no pescoço, mas Deus o protegeu e fez com que vire duro como pedra, então Esaú chorou de dor nos dentes”. Nada indica isso no texto nem no contexto. A Torá não mostra nenhum indício dessa prática ou plano por parte de Esaú durante esses 20 anos, nem antes, nem depois. Pelo contrário, diz que insistiu em entregar grande parte de seus bens, que abraçou seu irmão, que o beijou e que chorou no seu ombro. A fantasia maliciosa dessa interpretação que provavelmente guarda um preconceito contra Esaú e seus descendentes desprestigia gratuitamente a Torá sem qualquer base e deve ser extirpada, como manda a Halachá (lei judaica).
O segundo relato se refere à violência sexual perpetrada pelo Shechem contra Dinah. A Torá diz: “saiu Dinah a ver as moças da terra, viu-a Shechem filho de Hamor o Chiviano, a tomou, deitou com ela e a torturou” (Gênesis 34:1-3). A maioria das interpretações dizem que foi um estupro, outras dizem que começou com delicadeza e terminou forçando ela. Uns poucos sugerem que se tratou de aflição amorosa. Até aqui, interpretações muito díspares, mas possíveis, ainda que nos convençam mais ou menos.
Entretanto, alguns leitores antigos, no midrash, questionam o que em Dinah poderia ter atraído o Shechem e sugerem o fato dela ter saído, ter se vestido com joias na via pública ou ter insinuado alguma inclinação pagã. Nada disso aparece no texto da Torá. Nem sequer esse enfoque. Pelo contrário. A Torá enfatiza a atitude violenta do Shechem. Tirar o foco do perpetrador e atribuir qualquer responsabilidade à vítima é uma deturpação grosseira do texto da Torá. Um sacrilégio, proibido pela lei judaica (Halachá) e deve ser extirpado pela honra da nossa tradição.
Que possamos ler nossas fontes milenares com fé responsável e corajosa na santidade da vida, com compromisso ético e com sensibilidade sagrada.
Shabat Shalom,
Rabino Ruben Sternschein
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