Uma opinião no Talmud sugere que “há três parceiros na [procriação de] uma pessoa: o Santo Abençoado, o pai, e a mãe”[1]. Diz-se que o pai fornece a semente (mazria) que formam as substâncias brancas do corpo, tais como ossos, nervos, unhas, o cérebro e o branco do olho. A mãe fornece a semente (mazraat), que os rabinos consideram ser as substâncias vermelhas, tais como pele, carne, sangue e a pupila do olho. E Deus dá à criança seu fôlego, junto com a beleza das feições, a visão, os poderes de ouvir e falar, a capacidade de se movimentar e interagir e a capacidade intelectual.

Mesmo que essa classificação não encontre respaldo na embriologia e nas ciências médicas hoje em dia, tal opinião não perdeu sua vigência, pois o ensinamento que traz, transcende à materialidade e ao binarismo.

Em geral, aquilo que fazemos, criamos ou produzimos, mesmo sendo autoral, vem acompanhado de muitas vozes, mãos e mentes, às quais podemos, talvez, até identificar e individualizar suas marcas no fruto. Esses outros que participam em forma não visível estariam, nessa metáfora talmúdica, representados na figura da divindade – aquela que se faz presente, mesmo quando não a reconheçamos.

A parashá desta semana fala sobre coisas ocultas que são reveladas, trazidas à existência ou apenas trazidas à luz. Seu texto começa com “ishá ki tazria…” -“quando uma mulher der à luz…”. Tazria, da mesma raíz de zera (semente), não pretende que todo o universo contido no interior da semente fique latente ali, mas sim, que germine, brote, nasça e se revele.

Em geral, o fruto ou a novidade chamam a atenção do expectador. Ao se deparar com uma mangueira carregada de frutos, os olhares são direcionados para as mangas, mesmo que elas sejam o elemento mais impermanente do cenário, já que os frutos seguirão seus caminhos, mas as árvores se manterão firmes ali. Talvez aconteça algo semelhante quando nasce uma criança. As atenções são para a novidade, e esse ser que se apresenta ao mundo. No entanto, por traz dessa criação, está uma mulher coautora no processo criativo, bem como a outra parte genitora, que também renascem em uma nova posição, após darem à luz.

O texto da parashá, a partir dessas primeiras três palavras, vai conduzir a uma diferenciação de gênero. Mas a nossa leitura do texto pode conduzir à divisão ou ao encontro, pode colocar o foco no fruto ou voltar nossos olhos para a semente, ou mesmo pode nos convidar a dar dois passos atrás, para ver toda uma corrente milenar que antecedeu a essa nova criação.

Que possamos ver para além do óbvio ou aparente. Que possamos olhar os nossos textos com generosidade, para encontrar neles espaços que permitam nos revelar o que está além das palavras.

 

Shabat Shalom!

Rabina Kelita Cohen

 

[1] Talmud Babilônico, Nidá 31a

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